Referendo - inconvenientes e distorções



Mais atentos à realidade política e alertados sobretudo pela utilização legitimista dos referendos em regimes autoritários (Hitier — 19 de Agosto de 1934, Salazar — 19 de Março 1933), vieram pôr o acento tónico nos inconvenientes e distorções que a sua prática revelava por contraposição com formas de Democracia Representativa.

Perfilam-se assim, na sua essência, as principais.críticas ao referendo:
a) Os cidadãos não possuem em regra capacidade ou disponibilidade para ajuizar e escolher as soluções politicamente mais acertadas, sobretudo quando os problemas são complexos;
b) O referendo não valora a intensidade das convicções dos cidadãos;
c) As decisões referendadas não resultam de um consenso
d) O referendo põe em crise as minorias;
e) O referendo colide1 e enfraquece os institutos da Democracia Representativa.

Assim esboçados, vejamos agora mais em detalhe cada uma destas objecções.

A reserva à indisponibilídade ou à incapacidade dos cidadãos para optarem por via referendaria, resulta menos de uma pretensa inferioridade intelectual ou científica, e mais da ausência de tempo para ponderar os assuntos em causa. É através dos políticos profissionais, familiarizados com os problemas, e pagos para neles pensarem a tempo inteiro, que as decisões podem sair acertadas.

Por outro lado, o nível complexo de muitos problemas públicos (adesão à CEE, aprovação do texto da Lei Fundamental, a reforma administrativa, vulgo Regionalização, por exemplo), não devem ser exclusivamente deslocados para as mãos dos cidadãos, posto que, a estes será em regra difícil apreenderem com rigor das várias implicações do tema proposto.

A intensidade das opiniões, relevam muitas vezes de tal modo que, a simples soma aritmética dos votos positivos e negativos, pode conduzir a erros de cálculo graves para a estabilidade do sistema político. Um escasso número de votos, ainda que francamente minoritário, sobre certo item, pode corresponder, no entanto, a uma forte e sentida convicção de oposição, que deve ser ponderada pêlos detentores do poder político.

Através do referendo, adiantam os seus críticos, dada proposição, pode vir a prevalecer, com uma maioria pouco activa e desinformada, subestimando-se uma posição que, pela sua veemência pode traduzir mais e melhor conhecimento do problema.

Directamente relacionadas com esta questão, estão as críticas a propósito do carácter conflitual e bipolarizador dos referendos e da marginalização das minorias.

Neste contexto, o papel dos Parlamentares é mais racional.

O outro tópico, o da conflitualidade dos referendos, tem sido dos mais abundantemente glosados, a par do debate democracia directa — democracia representativa.

O referendo pondera, em regra, duas alterantivas. Neste plano existem dois blocos que discutem, e no final restará um bloco triunfante e um derrotado. Todavia, dizem os argumentadores contra este mecanismo de democracia directa, as discussões democráticas não se reduzem a duas alterantivas. É possível e desejável que se ponderem três ou quatro e que consensualmente se eleja a solução que de todas reuna um pouco e que concilie interesses divergentes. Como afirma ERNEST BAKER: «A discussão não é só uma batalha de ideias, é também um casamento de pensamentos».

Ora, o local indicado para a prossecução do consenso é o Parlamento e não o referendo. No primeiro é possível estudar, discutir, alterar, trocar, refazer qualquer proposição, tarefas que constituem, em boa verdade, o cerne de qualquer processo democrático. Pelas práticas referendarias, toda a estratégia da discussão passa para o segundo plano, dando lugar à simples opção entre duas alternativas.

Finalmente, existe um último argumento contra o referendo. Último no elenco que fizemos, apenas por razões de exposição, mas sem dúvida a crítica principal à globalidade dos institutos de democracia directa. Diz respeito ao enfraque cimento das instituições representativas, em particular o Parlamento, com a introdução do referendo.

A tensão que se gera entre os dois tipos de legitimidade, afirma-se, ameaça os mecanismos representativos e põe em crise o próprio sistema político. Este complexo tema pode, no entanto, perspectivar-se de duas formas: do ponto de vista prático e do ponto de vista teórico. A perspectiva prática e utilitária deve, cremos, ser apreciada em função do concreto regime jurídico-constitucional e das condições do sistema político considerado. Já quanto ao debate teórico, o problema subsume-se em saber se o referendo se quadra com a lógica da democracia representativa.

Comentários

Anónimo disse…
Perigoso raciocínio este que opõe, em nome do pragmatismo, a democracia directa à democracia representativa.
Os intelectuais tendem sempre a achar que o povo é mais manipulável do que as elites, iluminadas ou esclarecidas (noutros sistemas políticos, também designadas de vanguardas), mas a história está repleta de exemplos que comprovam o contrário. Aliás há estórias para todos os gostos e teorias.
Mas nesta matéria, tal como noutras, importa observar o que se passa em democracias consolidadas, que comungam connosco valores civilizacionais ou princípios sociais semelhantes.
A democracia directa, designadamente em assuntos fracturantes, como é o caso da Regionalização, convive muito bem com a democracia representativa.
Como é que no nosso sistema eleitoral, sem círculos uninominais e regionais, sem primárias, com programas políticos algo vagos ou indeterminados e com pessoas venais que se prestam a negociatas de “mercearia”, seria possível identificar e escolher as propostas concretas de cada partido sobre os demais diversos assuntos?
Na verdade, no complexo de propostas que compõem um programa eleitoral existem diversas tipologias e graus de relevância.
Porém, existem matérias relativamente às quais eu, cidadão eleitor, não me importo de delegar – porque, mesmo não concordando integralmente com elas, será possível melhorá-las ou mesmo revertê-las no exercício da própria acção política. Outras há, não obstante, que uma vez tomadas são irreversíveis ou têm um impacte geracional. Nestas, prefiro não delegar e pronunciar-me directamente através de referendo.
Este assunto, caro António Almeida Felizes, não pode ser de geometria variável, em função de interesses circunstanciais ou de pretensos elitismos, conforme o soprar da brisa...
A vida em geral, e a política em particular, é feita de conflitos, de divergências.
A questão fundamental não está na forma de os evitar, até porque não há, mas sim no modo de os resolver.
Em síntese, a Regionalização não se pode decidir na secretaria – através do confronto dos grupos de interesse. Isso seria menosprezar ou apoucar a relevância estratégica desta reforma estrutural. É necessário demonstrar à saciedade os seus perigos e virtuosismos, os seus reflexos directos e colaterais… Depois, para o bem ou para o mal, o povo decide, com a lucidez e a cultura que cada um foi capaz de obter através do seu estudo e experiência de vida. É assim nas democracias evoluídas e não tuteladas por vanguardas iluminadas!
Neste caso não estou de acordo com o Félix Esménio. O Referendo terá vantagens em certas situações, mas não passa da opinião de um eleitorado num determinado momento.

Não tem legitimidade para condicionar o futuro. A Lei sim, em especial a mãe e fonte de todas as Leis: a própria Constituição!

É por isso que eu sustento que a Regionalização, que é um imperativo constitucional em Portugal, não poderia ter sido travada por via referendária!

Ou seja, o referendo é, em si, claramente anti-constitucional, por mais voltas que lhe dêem os malabaristas do "direito" e da politiquice, que o engendraram nas condições que se conhecem.

Não sei o que seja a "instituição em concreto" de qualquer das normas constitucionais: se é para não avançar com a Regionalização no Continente, renegando assim um dos princípios em que se sustenta a administração pública dos nossos parceiros europeus, haja coragem e VERGONHA e altere-se a Constituição nesse domínio!

Até lá, o Estado está em dívida para com o País por não ter dado cumprimento à Constituição. Os responsáveis políticos por esta situação têm milhões a pagar-nos, por juros de mora...