O ambiente e a paisagem num contexto de regionalização

Entre as pessoas pouco dadas a preocupar-se com o nosso futuro colectivo, mas que de quando em vez perscrutam o horizonte e dele recebem mensagens assustadoras, corre a frase seguinte: “ainda se há-de ver trabalhar de novo todas estas courelas que estão agora ao abandono”.
Nunca se pode dizer que não. Efectivamente os socalcos podem virar frondosos declives, os vinhedos passar a plantas rasteiras que produzam álcool para automóveis, o milho mudar para alguma abóbora híbrida ou transgénica mais vantajosa para a alimentação animal. A paisagem é que jamais será a mesma.
Aquela frase servia para assustar os jovens, pô-los de sobreaviso, dar-lhes uma reprimenda sobre o seu desleixo. De igual modo, quando se via alguém de coluna vertebral ao alto, lamentando-se pela falta de trabalho ou a pedir, logo alguém dizia que fosse trabalhar para a lavoura que não faltava onde.
Quem hoje disser isso não nos está apontando o caminho da abundância, mas o da miséria. Já não é realista usar tais frases. Duvido que seja ainda possível dar às courelas do Alto Minho a produtividade que em tempos alimentou milhares. Tornam-se necessárias novas soluções, mas quase é certo que adulterarão a paisagem e mudarão o ambiente.
Desde que a batata e o milho de maçaroca invadiram estes campos que cá não houve mais fome. Ao superpovoamento sempre se respondeu com a emigração, mas nunca ia a família inteira. As raízes cá ficavam mesmo que sustentadas a broa e caldo de couves e feijão adubado com a carne do bízaro.
De modo maciço, com grupos familiares completos, a nossa emigração é recente. Nos últimos vinte anos é que tem havido uma progressiva debandada. Em certos casos mais específicos terão ocorrido migrações internas deste género devido à fome de meados do século passado. Para o exterior só desde a década de setenta. Hoje a quem se vai dizer que volte?
Os concelhos de Paredes de Coura, Arcos de Valdevez, Ponte de Lima e Ponte da Barca são os que mais sofrem no Alto Minho com a desertificação do meio rural, com a deterioração da paisagem, com a destruição do arquétipo da exploração rural secular.
Por todo o lado já se vêm socalcos destruídos. No Sistelo, candidato sempre adiado a Património da Humanidade, corremos o risco dos seus socalcos tombarem também. Será possível criar zeladores da natureza e do meio rural, para manter artificialmente uma paisagem, que já não um modo de vida, mas o equilíbrio precário possível entre o homem e o ambiente?
Nas quintas e quintais, frondosos jardins a que a vinha contínua já produzira alterações, abandonou-se a agricultura promíscua. Outrora cultivava-se em cinco níveis no mesmo plano vertical: feijão, milho, vinha, oliveira, nogueira. Hoje já se só vêm matos, silvas, giestas e codeços.
Mesmo aqueles que tentam obstar a esta invasão fazem-no pela beleza, sabendo que têm prejuízos. Muitos que iam arranjando trabalho por perto de casa faziam-no nas horas sobrantes. Cultivavam com a mulher a sua courela ou até a de outros. Mas hoje vão trabalhar cada vez para mais longe, as mulheres entraram no mercado de trabalho não agrícola e o tempo e a vontade vão escasseando. Só no sábado se vê alguma gente a trabalhar no campo.
Aos velhos deram-lhes um terço e um baralho de cartas para estiolarem nos Centros de Dia em vez de os deixarem livres de fazerem o que lhes aprouvesse, andar com a vaca pela soga, dar uma sachadela nas batatas, aquelas selvajarias que os bem pensantes e ordenados não queriam ver.
De certo conforme o local, estamos no princípio, no meio e em alguns sítios no fim de um mundo que, mesmo difícil, deixa saudades a muitos. A saudade de estar na América e ter um irmão a conduzir pachorrentamente os bois, estar na Austrália e saber que pode voltar às terras que um primo lhe trabalha.
Agora já não voltará ninguém. É inútil até pedir ao governo, à comunidade dinheiro para fantasmas. A manutenção da paisagem só será possível com um enquadramento específico para a população que nela habita, com um trabalho perto de casa e um estímulo para preservar o ambiente. Se isso fosse implementável haveria pessoas interessadas.
Há um conhecido autarca que se quer reformar dessa actividade para ser pastor e até já diz: “a terra para quem a trabalha”. Será que uma nova lei das sesmarias resolveria esta situação? Claro que nos faltam leis inovadoras para regulamentar o uso da terra.
Até agora só tem havido preocupação em abrir estradas para que os que cá estão possam fugir mais depressa e para que alguns venham cá passar um fim-de-semana encurralados numa casa que dizem de campo, mas que cada vez mais se parece com um inestético bunker.
A regionalização não pode servir para querer fazer no Norte a cópia do que se faz no Sul. Também vejo muita gente preocupada com o lado macroeconómico, com indicadores, subtilezas estatísticas e pouca preocupada com os problemas reais. Estamos todos condenados ao racionalismo económico que levará à desertificação inevitável?

Comentários

Anónimo disse…
O Amigo escreve muito bem. Comecei
a ler e foi de seguida até ao fim.
E voltel a lê-lo. Gostava de escre-
ver assim, mas tenho pouco de cur-
sos...

Exala um aroma de Aquilino Ribeiro.
Semprer me deleitou e ainda hoje, com 63 anos, o releio com frequen-
cia. É o meu escritor favorito.

Sabe que a maioria dos intelectu-
ais portugueses, pequeno burgueses,
amaricados, calças roçadas das cadeiras dos cafés, sempre com uma
roupinha de reserva para a even-
tualidade de uma entrev. televisão.
receber uma condecoração por livros
que quase ninguém lê ou integrar
uma comitiva oficial,

sabe que eles o consideraram e con-
tinuam a considerar um mero escri-
tor Regionalista? Tenho a certeza
que sabe e arrisco que melhor que
eu

Mas ele não é um escritor regio-
nalista, E tenho quase a certeza
que se fosse vivo estaria contra
a Regionalização do país.

(Espero que ele não tenha conheci-
mento que o estou a utilizar na
campanha contra a regionalização)
trigalfa disse…
Aquilino é outra loiça.
A propósito, lamento o estado em que está a Casa Grande de Romarigães, a contradição, e só esta, com a Igreja Paroquial próxima, toda bem asseada e com as placas que assinalam a passagem por cá de Presidentes e Primeiros-Ministro, que a Casa é local certo de peregrinação.
Congratulo-me que, de uma referência a realidades locais como os socalcos dos Sistelo, possa ter dado uma ideia do quão importante é preservar o todo nacional.
Mas ressalve-se que nem sou regionalista nem contra. Sou contra a pressa, contra a confusão, contra o artificialismo.
Sou matemático, informático, racionalista quanto baste, mas a poesia é fundamental para uma visão humana da realidade. Os regionalistas mais duros só falam em números.
Obrigado
Sam disse…
Muito interessante o artigo, embora triste. Triste porque realista e que nos alerta para o problema do abandono e do despovoamento das terras do interior.