Novas Territorialidades

Vital Moreira
Professor universitário

02.09.2008,

Doravante, os distritos são uma sobrevivência ainda mais exótica e injustificável na nova racionalidade territorial do país

Enquanto os assaltos e a rentrée pós-estival monopolizam a atenção dos media e dos comentadores, vão passando indevidamente despercebidas importantes reformas políticas, como as novas leis sobre as entidades intermunicipais e sobre as áreas metropolitanas, recentemente publicadas.

Embora o associativismo municipal não seja um fenómeno novo, vindo desde antes de 1974, a nova lei das "comunidades intermunicipais" (CIM) constitui, porém, uma considerável inovação na filosofia intermunicipal, ao estabelecer legalmente um critério territorial para a sua criação, abandonando a geografia variável das entidades intermunicipais que prevaleceu até aqui.

Doravante, as entidades intermunicipais correspondem necessariamente à divisão territorial das NUTS III do Continente (excluídas as que integram as duas áreas metropolitanas de Lisboa e do Porto), o que confere homogeneidade e consistência territorial à nova geografia intermunicipal.

Por vontade dos municípios interessados, as CIM podem abranger mais do que uma dessas unidades territoriais, desde que contíguas e pertencentes à mesma unidade territorial NUTS II (as cinco "regiões-plano").

Embora a criação das CIM não seja obrigatória, os municípios têm todo o interesse na sua formação, não somente para poderem desempenhar em conjunto determinadas tarefas comuns, mas também para poderem participar na gestão dos investimentos do QREN e, por último, para beneficiarem da descentralização de tarefas estaduais que sejam directamente atribuídas às CIM, e não individualmente aos municípios.

De facto, desde a revisão constitucional de 1997, é possível confiar tarefas públicas directamente às associações de municípios, e não singularmente aos municípios. Por isso, é de esperar uma cobertura universal das CIM.

No caso das "áreas metropolitanas" (AM), a nova lei regressou (e bem) à ideia de que só há duas regiões metropolitanas (a de Lisboa e a do Porto), abandonando uma das mais infelizes inovações da reforma de 2003, que foi a livre criação de áreas metropolitanas, dependendo somente do número de municípios e da população envolvida, o que levou à proliferação de várias "áreas metropolitanas" fictícias.

Resistindo à demagógica pressão transpartidária para a eleição directa dos órgãos das AM - o que faria delas verdadeiras autarquias supramunicipais -, o Governo conservou-as como uma manifestação específica do fenómeno intermunicipal, sendo os seus órgãos constituídos a partir dos órgãos próprios dos municípios.

Frustrou-se assim a deriva autonomista das áreas metropolitanas, que aliás não fazia nenhum sentido, a não ser que se quisesse promover sub-repticiamente a criação de duas autarquias regionais centradas em Lisboa e no Porto, antecipando a regionalização parcial do país, à margem da Constituição e da actual divisão regional do Continente.

Com a presente reforma das entidades intermunicipais, nas suas duas variantes, deu-se um importante passo para a legibilidade e racionalidade da organização administrativa do território, a seguir ao alinhamento da administração territorialmente desconcentrada do Estado com a divisão das NUTS II e das NUTS III, que ocorreu ao longo desta legislatura.

Doravante haverá homogeneidade e consistência na divisão territorial, tanto para efeitos da administração periférica do Estado como para efeitos da administração intermunicipal.

Antes de mais, as novas CIM e AM consolidam decididamente a institucionalização das unidades NUTS III, não somente como base da administração territorial do Estado (investimentos do QREN, serviços de saúde, organização judicial, etc.), mas também como substrato territorial da cooperação intermunicipal institucionalizada.

Além disso, essa opção territorial constitui mais um passo a caminho de uma futura regionalização autárquica com base na actual divisão territorial das cinco NUTS II, que pertencem à mesma matriz e filosofia territorial daquelas, visto que umas congregam as outras.

Aliás, no caso do Algarve, que compreende uma só unidade NUTS III, coincidente com a NUTS II regional, a respectiva CIM terá poderes legais reforçados, de natureza regional, o que prefigura claramente uma proto-região administrativa, com poderes próprios e órgãos de governo próprios (embora não directamente eleitos, como ocorrerá nas futuras autarquias regionais). De resto, o mesmo pode suceder teoricamente noutras regiões, visto que a lei permite a fusão das várias CIM/NUTS III dentro da mesma NUTS II...

Com esta nova filosofia da administração territorial, torna-se cada mais exótica e bizarra a manutenção dos distritos administrativos. Compreende-se cada vez menos a manutenção de um nível intermédio de administração periférica do Estado entre o nível sub-regional das NUTS III (28 no Continente) e o nível regional das cinco NUTS II. E menos ainda se entende que a divisão distrital seja discrepante com a nova divisão das CIM (NUTS III) e das regiões administrativas (NUTS II), cavalgando as respectivas fronteiras.

Não podendo os distritos ser formalmente extintos, por efeito de um impedimento constitucional, nada obsta porém ao seu tendencial esvaziamento funcional nem muito menos à adaptação da sua divisão territorial, de modo a superar pelo menos a discrepância com os limites das cinco regiões administrativas (NUTS II), o que afecta uma meia dúzia dos actuais 18 distritos do Continente.

Doravante, os distritos não são somente testemunho de uma arcaica divisão administrativa do território, mas também uma sobrevivência cada mais exótica e injustificável na nova racionalidade territorial do país.

A extinção administrativa e política dos distritos é a reforma que fica por fazer, e que perde pela demora...
.

"Publico"

Comentários

Anónimo disse…
Caros Regionalistas,
Caros Centralistas,
Caros Municipalistas,

Por razões de coerência pessoal e de ética que não vou mencionar aqui e que nunca explicitarei publicamente, deixei de ler o jornal "Público" há muitos, muitos meses atrás. Podem registar que as razões são ponderosas e tal decisão está definitivamente tomada, sem qualquer necessidade de pensar na transumância de atitudes. Por isso, este comentário irá cingir-se ao conteúdo da transcrição do artigo que o Professor Vital Moreira periodicamente dá à estampa naquele proto-jornal feita neste blogue.
Começo exactamente pelo fim (e isso basta-me):

"A extinção administrativa e política dos distritos é a reforma que fica por fazer e que perde pela demora ..."

Como é de depreender da evolução dos acontecimentos e nunca do que se vai escrevendo por aqui e por ali, a extinção política é um conjunto vazio, dado que a componente política distrital nunca existiu e a extinção administativa nunca terá lugar com a solução que agora se propôs e entrou em vigor, com a criação das CIM (Comunidades Intermunicipais) a qual não é obrigatória; mas só terão acesso às "benesses" prometidas sómente os municípios que decidirem organizar-se como a Lei agora estabelece e dentro das áreas geográficas já aprovadas, destinadas às e enquadradas pelas regiões-plano, como berço das futuras regiões administrativas (para se ir de Lisboa a Valença, não hesitam em almoçar na Guarda e jantar em Valença, quando poderiam aceder directamente à A1). Aquilo que o Professor Vital Moreira designa por "extinção administrativa" vai continuar como reforço administrativo e a intensificar-se da pior maneira possível, em termos de regionalização com vista ao desenvolvimento, alimentando as soluções burocráticas e administrativas tanto no seu funcionamento como nos objectivos a atingir.
Por estas razões, a extinção dos distritos e das funções adjacentes dos governadores civis é totalmente inócua, tanto em termos políticos como administrativos, procurando-se com as CIM substituir-se um administrativismo por outro muito pior, pleno de vícios, de burocracias e outras valências do género.
Pensar a regionalização de acordo com um enquadramento jurídico-orgânico, no silêncio dos gabinetes, tendo como pano de fundo algumas afinidades políticas e ideológicas, não perece constituir a melhor forma de se estabelecerem as normas estratégicas e operacionais que devem reger a regionalização em direcção ao desenvolvimento, mas sê-lo-à mais que suficiente para fins puramente administrativistas e clientelistas, pelo muito respeito que tenha pela formação juridico-constitucional e nível intelectual do referido Professor.
Visão muito diferente terá sempre quem tenha já "obedecido" a razões objectivas determinadas por experiência real de regionalização, mesmo que seja ao nível dos esforços reorganizativos a favor da regionalização de actividades complexas e de dimensão nacional de uma grande empresa, na sequência de decisões de natureza estratégica da maior importância, ao tempo competentemente tomadas.
O autor deste (e de outros) "post", ao tomar as posições que conhecem sobre a regionalização autonómica, não o faz de ânimo leve em termos de conhecimentos sobre as teorias da regionalização e, sobretudo, das características do nosso País, mas pretende sempre fazê-lo com base numa experiência única de que foi protagonista directo e privilegiado na execução de uma política de regionalização empresarial de grande dimensão.
Com efeito, há mais de 30 anos, uma empresa de grande dimensão suportada por capitais públicos (nem tudo o que é público é mau; tudo o que é privado não é o reino dos céus), decidiu que as respectivas actividades estatutárias, em regime de monopólio, fossem criteriosa e definitivamente regionalizadas. Tão depressa e tão bem decidiu como passou logo à sua prática, inciando todo um processo de recrutamento dos seus principais dirigentes regionais. Tive a oportunidade de, após concurso público na sequência de resposta a anúncio (nunca houve influências partidárias nem de outra natureza qualquer e, se tivesse havido, teria sido uma gravíssimo erro empresarial no domínio do recrutamento), integrar esse núcleo restricto de dirigentes regionais, com a finalidade relevante de estabelecer as estruturas necessárias para que os negócios de base regional fossem desenvolvidos (crescimento com aperfeiçoamentos).
E foram-no num tempo recorde, com uma maratona de recrutamento de dezenas de licenciados de diversas especialidades para dar corpo e alma a um processo regional e interveniente nos negócios empresariais, onde se solicitava o vínculo dos candidatos escolhidos, (também por concurso público), ao local para onde foram recrutados e seleccionados. Cada departamento regional desenvolvia uma estratégia própria de recrutar os recursos humanos (novos protagonistas) e outros de que necessitasse no próprio local da respectiva sede, sempre com a finalidade de relevar e potenciar o valor dos recursos próprios residentes nesses locais. Os recursos que por dimensão, escala ou inexistência nos locais, não fosse possível recrutar eram-no de forma integrada e centralizada, mas sempre com a "homologação" local ou regional.
Desta estratégia de regionalização de negócios resultou um crescimento da actividade e a melhoria substancial da prestação de serviços nunca verificados antes com a gestão centralizada e centralizadora dessa empresa, vincularam-se os recursos de cada departamento regional/local (adquiridos no respectivo local) aos objectivos das populações em que se integraram, através de uma criteriosa e objectiva análise da procura de serviços, tanto real como potencial.
Nesta linha, foi a primeira empresa portuguesa a instalar uma rede informática para gestão integrada de recursos materiais, no aproveitamento sinergético de recursos e na optimização da sua aplicação específica e subsidiária, a nível nacional (princípio da subsidiariedade).
Ainda conseguiu implementar critérios de controlo de gestão dos negócios, a nível regional, em que os atrasos na realização dos investimentos (de cuja conclusão nos prazos previstos dependiam o reforço do crescimento da actividade e da qualidade de serviço) determinavam os chamados "custos de oportunidade ou de ineficiência" dos investimentos, transformando departamentos superavitários em deficitários devido a esses custos não contabilizáveis mas importáveis, em alguns deles, ao superarem os lucros operacionais apurados. Sem o saberem, com uma versão simplificada, os seus autores entravam nos primórdios de estabelecer um critério de análise económica hoje em dia muito em voga na análise da eficácia e eficiência dos gestores na direcção das suas empresas - o conceito do EVA (economic value added) e do estabelecimento das condições da sua remuneração anual.
Provavelmente, alguns dos leitores deste "post" foram também protagonistas daquele esforço de regionalização de negócios com resultados quantitativos e qualitativos que garantiram uma reconhecida proeminência e reputação da empresa a nível nacional e também internacional que ainda hoje perdura e cada vez mais se acentua.
Por tudo o que foi exposto, uma coisa é estabelecer as "traves mestras" da regionalização no remanso dos gabinetes e das afinidades político-partidárias, outra é estabelecer os mecanismos de uma regionalização que, para além de estar mais perto das populações, crie as estruturas de funcionamento regional que melhores condições proporcionem para atingir o desenvolvimento: crescimento económico com aperfeiçoamentos em diferentes naturezas das disciplinas económicas, sociais, culturais, educacionais, ambientais, etc.
A Lei de criação das CIM, já em vigor, é um passo atrás no sentido de uma regionalização em direcção ao desenvolvimento.
Porém, os que tiverem tendências mais detractoras poderão argumentar: mas regionalizar um País não é o mesmo que regionalizar a actividade de uma empresa, mesmo de grande dimensão.
Claro que não, mas quem tiver esta última experiência adquire valências de inegável interesse e importância para definir melhor as condições estruturais e políticas necessárias à adopção de soluções "operacionais" (estrutura e funcionamento políticos, nunca administrativos) cuja macroestrutura política foi correctamente estabelecida no texto constitucional reservado às Regiões Autónomas dos Açores e da Madeira e adeaquadamente legislada na parte relativa às Regiões Administrativas na época, hoje dramaticamente desactualizada e desajustada da realidade das 7regiões autónomas do território continental, mesmo do nosso País como um todo ou com a rampa de lançamento simulada das proto-Regiões Administrativas.
Neste caso, não se trata de dar um passo atrás para dar 3 ou mais passos em frente. Trata-se tão só de dar passos atrás e quando se o faz, dado que se não vê, pode esperar-nos um grande precipício.

Assim não fosse, amen.

Sem mais nem menos.

Anónimo pró-7RA. (sempre com ponto final)