Regiões e Interioridade

O debate sobre a regionalização em Portugal assumiu contornos e significados políticos que estávamos longe de imaginar ainda há poucos anos.

A regionalização, que foi entendida, unanimemente e durante quase duas décadas, como uma prioridade nacional do Portugal democrático, constante dos diversos programas partidários e de governo, passou a ser apresentada ora como a ordem do caos e da desagregação do Estado, enfraquecendo a velha «pátria» de mais de oito séculos que passaria a comparecer dividida nos corredores de Bruxelas.

Se os vaticínios ridiculamente apocalípticos da «nação em migalhas», num cenário de «balcanização», só poderão servir os delírios populistas mais conservadores, o certo é que tal imagem subliminar está a ser usada em quase todos os discursos antiregionalistas.

E, no entanto, todos sabemos que a ideia de região ganha hoje um novo significado, como lugar estratégico de diferenças e de acção política face à crescente globalização económica e cultural, num mundo em que os poderes tendem a afastar-se cada vez mais dos cidadãos e em que os Estados e as fronteiras tradicionais perderam parte dos seus antigos atributos.

O Estado-nação, tal como foi mitificado pelos liberalismos oitocentistas, segundo o quadrilátero povo-Estado-nação-governo, e exacerbado pelas ditaduras deste século, ou mesmo pelo Wellfare State, perdeu terreno. As «economias nacionais» têm vindo a enfraquecer face ao crescimento do papel de entidades transnacionais e multinacionais. As fronteiras políticas, económicas e culturais são abolidas ou redefinem-se em linhas fluidas perante o avanço de políticas transnacionais ou de movimentos de cooperação interregional.

Simultaneamente, a rapidez das comunicações que nos transportam a qualquer ponto do globo pela Internet ou pela CNN e a crise das ideologias que está a reorganizar os nossos medos finisseculares estão a fazer de nós cidadãos planetários. Neste contexto, a questão regional reassume hoje uma importância crescente, não só pela necessidade de reforçar identidades - de ser -, mas sobretudo como um espaço adequado de intervenção cívica - de agir -, entre o nível local e o nacional e também entre o local e o transnacional. Afinal, como escreveu Torga, «o universal é o local sem as paredes» e, por isso, o «agir local» não pode dissociar-se do «pensar global».

Mas não deixa de ser também preocupante uma confiança ingénua nos benefícios da regionalização, anunciada por alguns discursos regionalistas como panaceia milagrosa para todos os males do país, resolvendo de imediato a pobreza endémica de vastas zonas do interior que veriam correr a si fluxos de ajudas comunitárias e de investimentos até aqui retidos nas áreas urbanizadas e industrializadas do litoral.

Porque, a regionalização como um elemento, mesmo que central, da reforma administrativa do Estado não pode ser entendida senão como um instrumento entre outros, nunca como um fim. Como escreveu Simões Lopes, «provavelmente a regionalização até vai pôr mais em evidência certos males, certos desequilíbrios, certas ‘disfunções'; provavelmente vai mesmo fazer despertar conflitos que por aí andam escamoteados. Espera-se dela, isso sim, que venha a fornecer meios válidos para a gestão desses mesmos conflitos e para a resolução dos problemas que estão na sua base».

Neste debate, a História tem sido invocada, a torto e a direito, para legitimar a perpetuação de lugares e poderes dados como adquiridos, num discurso simplificador e mitificante das vicissitudes e dos resultados de um processo que consagrou um Estado unitário fortemente centralizador e um poder local demasiado fragmentado.

A história recente é, em contrapartida, sujeita a um respigar anedótico de casos exemplares, descontextualizados e multiplicados, esquecendo-se, a cada passo, os processos e os contextos que enquadram os discursos e as práticas políticas. Talvez por isso valha a pena começar por resituar a regionalização como processo histórico, antes de proceder a uma reflexão pessoal (e empenhada) sobre a questão regional tal como hoje se nos coloca.

Gaspar Martins Pereira
professor de História Contemporânea e um dos nomes associados à preservação da história e da memória do Douro

Comentários

Anónimo disse…
Como instrumento político em direcção ao desenvolvimento e à eliminação das profundas e escandalosas assimetrias regionais, a regionalização vai permitir retomar o primado da política sobre a economia e dar à globalização os contornos (limites) necessários para que não invada destrutivamente o território das culturas e das tradições de cada País.
Esse esforço de regionalização ainda não está completo nem ainda interiorizado plenamente pelas populações e esperemos que o seja antes de se considerarem expulsas dos elementos culturais caracterizadores das diferenças nacionais de cada País, desde tempos imemoriais.

Sem mais nem menos.

Anónimo pró-7RA. (sempre com ponto final)