Regionalização: das coisas da lógica à lógica das coisas

Daniel Gameiro Francisco
Faculdade de Economia da Universidade de Coimbra
Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra




I - DAS COISAS DA LÓGICA ...

Quando a regionalização surge no sistema político português, em 1976, faz parte de um projecto mais vasto de descentralização do Estado, interpretado como um dos passos fundamentais para consolidar as aspirações democráticas e desenvolvimentistas emancipadas com o fim do Estado Novo.

O programa de descentralização então esboçado não suscitou qualquer resistência entre as forças políticas em presença. De igual forma a regionalização, que entrou na Constituição de 1976 como um dos princípios consensualmente aceites para subverter a tradição anti-democrática, centralista e burocrática da administração salazarista-caetanista.

Encarada como um vector estruturante das políticas de descentralização, a regionalização é colocada no mesmo plano de "naturalidade" que o projecto mais lato de reforma administrativa em que se insere. Coerente com a arquitectura institucional dum Estado descentralizado, captou inicialmente o mesmo tipo de adesão que as figuras "clássicas" dos municípios e das freguesias.

Todos se viram investidos das intenções de levar os órgãos decisionais da administração para mais próximo dos cidadãos e de os adaptar a uma representação eficaz dos diferentes níveis territoriais: local, regional e nacional.

Não se colocando imediatamente o problema da geometria regional a estabelecer, as regiões viram-se fortalecidas com a áurea de legitimidade que lhes estava a ser dada pelos governos francês e italiano nos respectivos programas de desenvolvimento, ao mesmo tempo que se enquadravam nos valores democráticos da participação política dos cidadãos, da equidade sócio-económica e da eficácia na actuação pública.

O axioma fundamental postulava que a regionalização era "necessária para aprofundar a democracia", mas o seu objectivo material era o de servir de instrumento para incrementar o progresso económico das diferentes regiões nacionais.

Em termos práticos, a regionalização é essencialmente vista como uma tentativa de resposta aos desequilíbrios e atrasos do desenvolvimento regional em Portugal. Perspectiva que se irá manter nos anos seguintes, em que a regionalização continuará a inscrever-se, antes de tudo, no plano do combate às fortes disparidades económicas inter-regionais.

Como todos os grandes desafios sócio-económicos a enfrentar, as assimetrias regionais eram encaradas como passíveis de resolução através duma forma estatal que lhes fosse apropriada. Neste caso, tratar-se-ia dum Estado descentralizado, modernizado, vocacionado para auscultar na intimidade cada parcela do território — e que em condições de celeridade e coordenação executasse as tarefas necessárias à actividade produtiva e à melhoria das condições de vida das populações.

Falamos portanto duma regionalização funcional, inspirada nos modelos de desenvolvimento que os países mais avançados da Europa empreendiam — obedecendo a circunstâncias políticas e culturais internas, certamente, mas também às exigências do planeamento económico e aos ensinamentos da economia regional então em voga. Ou seja, como referiu um dos nossos interlocutores, a região inseria-se no "ar do tempo".

Todavia, prontamente os impasses e as contradições começaram a minar o processo regionalizador.

Sem tradição no sistema de organização do país, a regionalização foi o elo mais fraco da ambiciosa reforma dum edifíco estatal de centralização secular, vendo-se atravessada por múltiplos obstáculos de ordem prática.

Estes configurariam uma trama de impedimentos que concorreriam para circunscrevê-la ao limbo da simbólica constitucional, forçando-a a uma espécie de estiolamento perante o "princípio da realidade".

Na verdade, em termos de regionalização, como noutras matérias, deve falar-se em Portugal de um processo cindido em dois planos distintos, animados por ritmos igualmente distintos: o dos discursos e o das práticas.

Enquanto o plano dos discursos registou vitalidade considerável, logo a seguir à sua consagração constitucional — artigos 238º, 256º e seguintes da Constituição da República Portuguesa, de 1976 , o plano das práticas da regionalização foi cedo bloqueado.

A tal ponto a distância entre os dois se cavou que da regionalização portuguesa se pode dizer o que Marx um dia disse da teoria hegeliana: fazendo parte das coisas da lógica, nunca fez parte da lógica das coisas.

Os discursos sobre a regionalização pertencem às coisas da lógica. Desde logo, da lógica democrática, que se desejava para o político; mas igualmente duma lógica de coordenação, funcionalidade e responsabilidade, que se aspirava para o administrativo, e duma lógica de desenvolvimento planificado, que se queria para o económico. Ao longo dos últimos vinte anos, a pluralidade dos motes discursivos sobre a regionalização não vai deixar de enfatizar estes e outros aspectos.

Com efeito, não obstante o seu remetimento para uma zona inexplorada da axiomática política, a regionalização possibilitou a entrada e a permanência no campo da discussão pública de temas cruciais para a reflexão sobre os padrões de organização e desenvolvimento a estabelecer no país.

Com o consenso grangeado e com as virtualidades que lhe foram imputadas sempre intactas, incentivou variadas concepções acerca do aprofundamento democrático do Estado, da participação dos cidadãos na vida política, da eficácia e fiscalização dos actos administrativos, do combate à massificação, à burocratização e à macrocefalia de Lisboa, do respeito das especificidades e dos equilíbrios regionais nos processos de crescimento — ou ainda do valor das identidades territoriais e da necessidade de aproximação a formas mais ecológicas de vida, naquilo que foi a correlação sempre efectuada entre regionalização e qualidade de vida.

Interrogações fundamentais para a reorganização do Estado e da sociedade portugueses, quase nunhum destes temas ou afins houve que não encontrasse resposta nas potencialidades imputáveis à regionalização, que se revelou um espaço semântico e cognitivo luxuriante

A batalha semântica foi fácil de ganhar, embora o mesmo não se possa dizer da efectiva modernização do Estado e da estrutura sócio-económica para que ela apontava. O destino que coube a esta última foi o mesmo de outras tentativas históricas para inverter o rumo centralizador da administração e da sociedade: uma ainda maior recentralização do poder e dos recursos sócio-económicos no Estado e na capital.
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Comentários

Anónimo disse…
Caros Regionalistas,
Caros Centralistas,
Caros Municipalistas,

As "coisas da lógica" só poderão conduzir ao exercício político utilitarista, centralizado e centralizador, no quadro de um jacobinismo já experimentado negativamente.
Coisa diferente é a "lógica das coisas" dirigida ao desenvolvimento onde não se encontra nem se pode encontrar outra solução que não inclua necessariamente a regionalização política baseada numa descentralziação efectiva assente na criação e implementação das 7 Regiões Autónomas.

Sem mais nem menos.

Anónimo pró-7RA. (sempre com ponto final)