O estado da ferrovia portuguesa: será o TGV necessário?

(Excerto de uma reportagem publicada no jornal Público, do passado dia 1 de Julho, sobre uma viagem num comboio de mercadorias entre Alverca do Ribatejo e Saragoça).

Seguidamente, transcrevo a parte da reportagem respeitante à viagem entre Alverca e Vilar Formoso, que ilustra bem o estado em que, presentemente, se encontram as estruturas ferroviárias portuguesas (na situação concreta, a Linha do Norte e a Linha da Beira Alta), e o impacto extremamente negativo que esta situação constitui para a economia portuguesa. Tudo isto enquanto se pensa em construir o TGV, avançando apenas com as linhas que servem Lisboa, e esquecendo a grande maioria do país, que continuará mal servida em termos ferroviários por mais alguns (demasiados) anos. Hoje é praticamente consensual dizer-se que o comboio é o transporte do século XXI, embora em Portugal a maioria das ferrovias seja digna do século XIX.


«Reportagem: De Alverca a Saragoça, à boleia de um comboio de mercadorias

De Alverca a Saragoça são 1200 quilómetros sobre carris que um comboio de mercadorias percorre em 19 horas e 30 minutos. O PÚBLICO aceitou o desafio para viajar na cabine da pesada locomotiva a diesel que atravessa a Península rebocando uma composição que pesa 1200 toneladas. E que só pára para meter gasóleo e mudar de tripulação.

São 22h30 no terminal de mercadorias de Alverca quando o maquinista Ricardo Lopes, aos comandos de uma locomotiva Vossloh, comunica ao Centro de Comando Operacional da Refer, em Braço de Prata, que o seu comboio está pronto a partir. A ordem vem via rádio e informa que deverá parar em Alhanda para receber do chefe da estação um modelo com a lista de afrouxamentos que terá de fazer dali até à Pampilhosa.

A pesada máquina, de 4200 cavalos, põe-se em movimento e desliza do ramal, entrando na linha do Norte. Dentro da cabine o ruído e as vibrações são mínimos, o que é um alívio para quem ali tem de permanecer durante largas horas.

Já lá vai tempo em que este tipo de locomotivas cheirava a gasóleo e o ribombar dos seus motores se repercutia por toda a sua estrutura. Agora é como se fosse uma máquina eléctrica, que circula sem esforço pela lezíria, com o Tejo ao lado, que só quase se adivinha porque a noite está nublada.

Meia hora é quanto dura esta velocidade constante de 100 km/hora porque em breve paramos numa linha desviada para sermos ultrapassados por um comboio de passageiros – o Talgo Lusitânia Hotel, que vai também para Espanha e passa veloz ao nosso lado. Por entre as janelas iluminadas distinguem-se fugazmente os passageiros jantando na carruagem-restaurante.

Aqui é consolador saber que temos umas bifanas para comer pela noite fora. Pensamos nisso quando vemos o rasto de luz extinguir-se na via e ficamos novamente na escuridão. Entretanto o sinal vermelho passa a verde e a Vossloh retoma a marcha.

nº 49801
Mas o que tem o comboio nº 49801 de especial, que amanhã o fará ser alvo da curiosidade de muita gente quando o avistar nas estações? A locomotiva vermelha da Takargo (uma empresa do grupo Mota Engil) indica que este é o primeiro comboio português a operar em Espanha. A liberalização do transporte ferroviário de mercadorias provocou uma pequena revolução neste sector e agora já não é necessário perder horas na fronteira para mudar de máquina. As composições viajam directas fazendo concorrência aos camiões TIR que já há anos deixaram de conhecer os obstáculos fronteiriços.

Este comboio vai carregado de pacotes de papel reciclado, destinado a uma fábrica de papel em Saragoça. Em vez de contentores, é transportado em “caixas móveis”, estruturas mais leves e flexíveis que tanto podem assentar num vagão do caminho-de-ferro como num camião. Foi até por via rodoviária que chegaram a Alverca, vindas de Alcochete, Loures e Maia, para agora viajarem a Espanha, onde o papel reciclado virará novo. O mesmo comboio trará de regresso bobinas de papel para a indústria transformadora, numa viagem que se realiza quatro vezes por semana.

“Desta forma nunca andamos em vazio e trazemos carga na ida e na volta”, explica Pires da Fonseca, administrador da Takargo, que, sem gravata, acompanhará o comboio até Saragoça para se inteirar in loco de toda a operação.

Esta noite o 49801 saiu de Alverca uma hora mais tarde, atraso que já não recuperaremos até ao fim da viagem. Em Coimbra passa-se às 1h11 quando se deveria ter passado às 23h56. A Refer não ajuda. A tal lista de afrouxamentos que o maquinista recebeu em Alhandra “parece uma lista telefónica”, ironiza o próprio. Por isso, devido ao mau estado da via, sobretudo nos troços da linha do Norte que ainda não foram modernizados, a viagem transforma-se num autêntico rally. Embora podendo circular a 100 Km/hora, o comboio é constantemente obrigado a reduzir a velocidade, às vezes a 30 Km/hora, o que implica um consumo incrível de combustível.

1200 toneladas em movimento
Os números impressionam: a locomotiva reboca uma composição de 22 vagões que pesa 1200 toneladas e mede 460 metros. E gasta a módica quantidade de 4,5 litros de gasóleo por quilómetro.

Parece muito, mas imagine-se o consumo de 22 camiões (tantos como o número de caixas móveis transportadas nesta composição) numa viagem de 1200 quilómetros. “Esta é daquelas situações que não oferece dúvidas. O comboio é mais amigo do ambiente e tirar camiões da estrada deveria ser uma prioridade de qualquer governo”, diz o administrador.

Depois da Pampilhosa, o comboio da Takargo serpenteia agora pelas curvas da linha da Beira Alta. Subindo sempre, atravessa túneis e pontes e galga sem problemas as pendentes mais inclinadas. Mortágua, Sta. Comba Dão, Carregal do Sal, Nelas, são como ilhas de luz no meio da escuridão, que o comboio atravessa sem parar.

Desta vez não há afrouxamentos. Na Pampilhosa, o chefe da estação só entregou uma lista de dois ao maquinista. E também não há ultrapassagens nem cruzamentos com outros comboios. Na linha da Beira Alta – principal via ferroviária de acesso à Europa – somos durante a noite única composição que nela circula. O que confirma a fraca quota do modo ferroviário (apenas 4 por cento) no transporte de mercadorias.

Mangualde avista-se às 2h40 da manhã. Agora a noite está limpa e avista-se um céu estrelado sobre um extenso vale salpicado de luzinhas amarelas. Imensa, a serra da Estrela é uma massa compacta ao longe.

O farol da locomotiva rompe a noite e incide sobre as duas tiras de aço dos carris. A linha está em bom estado e a velocidade oscila entre os 60 e os 100 km/hora. Já não há túneis e a vegetação que há pouco quase ameaçava invadir a linha deu lugar a uma paisagem agreste, de penhascos e granito.

Dos 50 e 60 km à hora
De Celorico à Guarda a Vossoloh faz o seu melhor, mas não passa dos 50 e 60 km à hora para vencer a subida até à cidade mais alta do país. De vez em quando patina, mas a máquina tem um sistema automático que cospe (é o termo técnico) areia para a linha para as rodas ganharem aderência ao carril. Já se recuperaram uns minutos, mas de repente um erro técnico faz parar o comboio.

O Convel é o computador de bordo que zela pela segurança da viagem. Avisa o maquinista sobre a sinalização na via, a existência de afrouxamentos (a “lista telefónica” entregue ao maquinista é um procedimento redundante) e alerta-o quando este não responde em conformidade podendo mesmo parar o comboio automaticamente.

Agora um “erro de baliza” fez a composição imobilizar-se em plena via quase à entrada da Guarda. Não foi fácil – nem nada barato tendo em conta o consumo de combustível - pôr as 1200 toneladas a mover-se em plena subida e retomar a velocidade. Mas pior seria, mais à frente, já quase em Vila Formoso, quando um segundo erro de sinalização voltou a fazer parar o comboio.

Aqui a rampa era mais inclinada e, uma vez parada, a composição começa a descair, em respeitinho absoluto pela lei da gravidade. O maquinista aperta os freios para evitar o recuo. E respira fundo preparado para a luta. É preciso jeitinho e técnica. Aliviar a composição e dar força à máquina. Patina. Mete areia. Descai. Patina de novo, mais areia, descai outra vez. E insiste-se no esforço de tracção. Os engates retesam-se. Vinte e dois vagões carregados querem descer. A locomotiva quer fazê-los subir.

A luta dura alguns minutos e o comboio volta a andar. Passam dez minutos da quatro da manhã e pouco depois estamos em Vilar Formoso, onde a dupla de maquinistas Ricardo Lopes e Samuel Valente dá lugar aos seus colegas Raul Lopez e Juan Carlos Hernandez. Uma mudança justificada pela necessidade de descanso do pessoal e porque são os espanhóis que conhecem a regulamentação dos seus caminos de hierro.»

(...)

reportagem de Carlos Cipriano
in Público, 01/07/2009

(A reportagem na íntegra pode ser lida aqui)

Já agora destaco um comentário à notícia de um leitor não identificado, que me pareceu particularmente interessante:

"Cito outro parágrafo, (...): "Na linha da Beira Alta – principal via ferroviária de acesso à Europa – somos durante a única composição que nela circula. O que confirma a fraca quota do modo ferroviário (apenas 4 por cento) no transporte de mercadorias." Como vê não é necessário o TGV para aliviar o trânsito nas nossas linhas. Muito mais importante seria usar esse dinheiro para renovar a rede e electrifica-la. E, já que fala em ecologia se há comboio pouco ecológico é o TGV. Logo a começar pelo rácio consumo de energia por passageiro, ou acha que os 300km/h se atingem à custa do vento? Depois há toda uma infra-estrutura dedicada a criar e manter. Ou é dos que que acha que se vão usar as linhas do TGV para mercadorias? Não, não pertenço ao grupo dos provincianos/novos-ricos que acham que ter um TGV é que o futuro da nossa ferrovia. A verdadeira política ferroviária moderna deveria ser a promoção das mercadorias em detrimento da rodovia, bem como uma rede sub-urbana e inter-urbana de qualidade."

A reflectir pelos responsáveis políticos portugueses...


Comentários

Anónimo disse…
Caros Regionalistas,
Caros Centralistas,
Caros Municipalistas,

O próprio título-pergunta deste "post" é a confirmação inequívoca da inexistência de uma política de transportes, de um modo geral, e de transporte ferroviário, em especial.
É lamentável o estado lastimoso em que se encontra a prática política no nosso País, onde tem mais importância o casuísmo que políticas sectoriais consistentemente elaboradas.
Hoje em dia dia, tem-se mais vergonha do exercício da POLÍTICA (submissão de aspectos particulares aos interesses gerais) com base no seu primado sobre tudo o resto, do que do CASUÍSMO político (submissão dos interesses da sociedade aos interesses particulares ou de grupo) seja de que natureza for.

Sem mais nem menos.

Anónimo pró-7RA. (sempre com ponto final)
Pedro disse…
O TGV não é urgente. Portugal vai beneficiar, como é obvio, mas não justifica o esforço que nesta altura de contracção económica é muito mais acrescido. Devemos esperar, deixar a economia ganhar folego e dirigir as contribuições para dossiers bem mais relevantes e urgentes. Agora fica a nota: Com ou sem TGV é necessário melhorar a ligação ferroviária entre Porto e Vigo, pois mesmo com a alta velocidade, tem de haver alternativa para as pessoas comuns.

Opinião completa em http://pedro-do-blog.blogspot.com/2009/08/tgv-sera-o-momento.html