O Poder Local debaixo de fogo

|Luís Filipe Menezes|

A última década foi desastrosa para todos que desejavam ver o país mais descentralizado, com os mecanismos de decisão mais próximos do cidadão.

Para além do compasso de espera de todo o tipo de medidas conducentes a qualquer tipo de regionalização político-administrativa, a decapitação da independência do Poder Local foi impiedosa.

Face a uma situação já estruturalmente deficitária do ponto de vista orçamental, foram desferidos golpes mortais na independência do poder autárquico. Pela via mais óbvia, ou seja estrangulando-o do ponto de vista financeiro. Já se sabe que quem é "pobre" é mais facilmente condicionado e manobrado.

Em 2003, uma bela noite, Manuela Ferreira Leite decidiu que o que era mesmo bom era aumentar os principais impostos de cariz nacional, nomeadamente o IVA, mas adoçando a boca do contribuinte com uma qualquer descida de taxas. Assim sendo, nada como cortar a receita dos outros. Dos autarcas, esses "inveterados gastadores". Num ápice foi decretada a redução quase a zero do então chamado imposto de sisa (hoje IMT) e a queda em quase 50% da então denominada contribuição autárquica (hoje IMI).

Em 24 horas, sem pré-aviso, num exercício em meu entender ilegal, tocando mesmo a inconstitucionalidade, as grandes câmaras viram voar metade do seu principal item de receita.

Há pouco mais de um ano, José Sócrates, aliás correspondendo mais uma vez a uma sugestão televisiva de Manuela Ferreira Leite, reduziu o escalão máximo do IMI em mais uma décima percentual. Uma bagatela! Só mais 12% da maior receita das grandes cidades!

Tudo isto ao mesmo tempo que, ao contrário do que é propagandeado, as autarquias ficaram impossibilitadas de se financiar no sistema financeiro, viram o Estado transportar para si responsabilidades acrescidas de despesa em áreas da sua responsabilidade - justiça, com a subsidiação dos julgados de paz; administração interna e educação, com a doação de terrenos para construções de escolas e esquadras; habitação social, com a co-participação na construção de milhares de fogos de habitação social).

É extraordinário como se pode passar para a opinião pública que o Estado é um bom gestor quando só "dá prejuízo" no equivalente a 3% da riqueza nacional anual, podendo financiar-se sistematicamente nesse valor, e que, em contrapartida, o Poder Local só seria bem gerido se apresentasse um superavit!

Neste momento, as câmaras estão de novo debaixo de fogo. O tema do momento são as empresas municipais. Segundo a demagogia governamental, corroborada pela de Paulo Portas, essas entidades, segundo eles dispensáveis, deviam ser extintas.

Para o cidadão comum, distante desta realidade, mas conhecedor dos sorvedouros aberrantes constituídos pelas REFER, CP, TAP, ANA, RTP e quejandas, isto parece fazer automaticamente sentido. Pura ilusão. Ao contrário do que afirma esse "charlatanismo" ignorante e mal intencionado, com essa extinção só se ia aumentar substancialmente a despesa pública.

Exemplifiquemos. Amanhã extinguindo a EMEL (empresa responsável pela gestão do trânsito em Lisboa), será que terminava a indispensabilidade de prestar o mesmo serviço, nas mesmas condições, na cidade capital? Claro que não. As atribuições da empresa e todos os seus funcionários teriam de passar para a tutela municipal. Com acréscimo brutal de custos: porque o regime fiscal, nomeadamente o IVA, é muito mais gravoso nas compras de serviços municipais, o regime salarial da função pública é muito mais rígido e caro (do estatuto disciplinar ao estatuto salarial ordinário passando pelo regime de gestão do trabalho extraordinário.

Subjazem assim os últimos e facciosos argumentos: essas empresas têm muitos e bem pagos administradores (já ouvi falar de 2 mil para duzentas empresas!), estão todas hiperendividadas e a maioria apresenta avultados prejuízos.

Mais três falácias de gentinha desconhecedora. Segundo a lei, um administrador em tempo completo não pode vencer acima do vencimento de vereador (e para 20 empresas só existem cerca do três administradores por empresa, uma grande maioria sem vencimento, por serem não executivos e no caso de ser a Câmara a assumir todas essas funções, não teria menos que um director municipal, dois ou três directores de departamento e outros tantos chefes de divisão para as liderar), o endividamento das empresas já está há muitos anos indexado ao municipal, ou seja interdito o seu aumento, e, finalmente, as empresas não lucrativas só reflectem a situação inevitavelmente deficitária da prestação da maioria dos serviços públicos, que seria em tudo semelhante caso o mesmo serviço fosse prestado pela Câmara Municipal.

Assim, da mesma forma que estou do lado dos que se interrogam se, mais de 200 anos depois da última importante reforma do ordenamento administrativo, é justificável manter o território dividido por mais de 300 municípios e 4 mil freguesias, não posso deixar de vir a terreiro contraditar o populismo oportunista e ignorante, que quer atirar areia para os olhos dos cidadãos, em troca de meia dúzia de votos.
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