A reforma das autarquias

Hoje gostaria de desenvolver alguma reflexão sobre aspectos da reforma autárquica posta em discussão pública através do chamado Documento Verde. E digo desde já que é necessária uma reforma. Não se pode continuar a ignorar as profundas mudanças sociais, económicas e demográficas que ocorreram em Portugal desde a última organização concelhia profunda, a do liberalismo do século XIX.

Evidentemente, a legislação que rege hoje a vida autárquica é a que foi aprovada depois da revolução de Abril, mas a estrutura concelhia e das freguesias é fundamentalmente a do século XIX.

Se pusermos de lado pequenos e grandes bairrismos e rivalidades paroquiais, se pensarmos o país e a administração local como uma máquina administrativa que se destina a servir os cidadãos da melhor forma e com rigor nos gastos, facilmente concluímos que a administração autárquica é desproporcionada em boa parte do território.

Olhando para o mapa dos concelhos, verificamos facilmente disparidades inexplicáveis nos organigramas de diferentes concelhos com população e extensão territorial idênticas. Claro que ficamos desolados ao verificar que muitos concelhos têm hoje a mesma ou menor população que há 150 anos; que há concelhos a decrescer perto de 20 por cento por década; que há concelhos com densidades populacionais de 10 habitantes por Km2.

Mas não culpem disso os autarcas. Eles fizeram o que puderam, dando condições de vida às populações que representavam e que os legitimavam. Não é culpa deles que, durante demasiado tempo, as populações do interior estivessem a horas e horas dos serviços públicos, por falta de estradas decentes, transportes, ou serviços locais suficientes.

Dizem-nos agora que há estruturas a mais! Será isto o reverso da medalha? Evidentemente que não.
Obviamente, as populações estão hoje menos isoladas, mas as novas estradas apenas servem para os jovens irem procurar emprego onde o vai havendo: no litoral.

O nó górdio do nosso ordenamento territorial é criar nos concelhos do interior actividades que gerem emprego. Já temos escolas a distâncias razoáveis, universidades, centros hospitalares, recintos desportivos, teatros, auditórios.

A nossa infra-estrutura local é de qualidade superior à de alguns países muito mais desenvolvidos. Só precisamos de gente! Gente que fique e dê uso a essa infra-estrutura, que desenvolva actividades novas e recupere algumas antigas, que dê vida à terra. E isto é responsabilidade do governo central.

Mas então o que poderá fazer-se com uma reforma autárquica? O governo aponta vários vectores de reforma, a saber, a Reforma de Gestão, a Reforma do Território e a Reforma Política. Em termos práticos, isto traduz-se na diminuição das freguesias e dos eleitos municipais, no emagrecimento dos executivos municipais e na modificação do processo eleitoral de que emanam esses executivos.

Em última análise, esta reforma pretende, evidentemente, gastar muito menos em despesas correntes.

As consequências desta reforma podem limitar-se, de facto, a gastar menos, o que, só por si, não a justifica. A ambição duma reforma devia ser orientada prioritariamente para a reorganização e repovoamento do território, e isso só pode fazer-se com um enorme investimento na criação e relocalização das empresas.

O investimento será grande, mas penso que será sempre menor do que o que conduz ao aumento constante da pressão sobre as áreas metropolitanas do litoral, onde a qualidade de vida é baixíssima, seja por sobrelotação dos serviços prestados aos cidadãos, seja pelo congestionamento dos transportes, seja pela distância cada vez maior entre habitação e local de trabalho.

Imagino que vai parecer estranho a muita gente do interior ver riscar a sua terra do mapa das freguesias. Imagino que a rivalidade entre povoações vizinhas trará discussões sem fim. Imagino que os pequenos barões locais serão tentados a mercadejar o seu peso político defendendo soluções populistas.

Por mim, não sentirei nenhuma angústia especial se a minha minúscula freguesia – que muito amo e pela qual me tenho empenhado na medida que o tempo me permite - vier a ser integrada, com o consenso dos seus poucos habitantes, numa administração com maior peso, maior competência e mais dinamismo; a terra e a memória não morrem por isso.

E que o meu concelho, que perdeu metade da população que tinha em pouco mais de meio século, tenha seis a oito freguesias em vez de 19. Mais importante do que ter uma sede de junta de freguesia fechada, é ter serviços prontos e eficazes e voltar a ver crianças a brincar na rua, adolescentes a progredir no estudo de proximidade, jovens com esperança de poderem mostrar o que valem desenvolvendo a sua terra, velhos que possam acabar os seus dias em paz na sua terra e não no anonimato dum lar num subúrbio urbano.

Que os nossos autarcas tenham a coragem que se impõe: que escutem as populações, que façam a pedagogia correcta: o mais importante são as pessoas e o respeito que merecem exige que sejam tratadas dignamente.
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Comentários

Al Cardoso disse…
"Precisamos de gente que de uso as infraestruturas"!
Nao poderei concordar mais, mas para termos gentes necessitamos trabalho para elas e, e ai que nunca de facto de investiu, para dar condicoes favoraveis para a criacao de trabalhos no "interior"!(Nao gosto desta palavra)
Caro 'al cardoso'

O meu amigo não gosta da palavra 'interior' mas, no caso de Portugal, não há palavra melhor para definir a dicotomia com o 'litoral'.

O grande problema do interior é económico. Faltam empresas que criem emprego e desta maneira possam contribuir para a fixação das populações.

Todavia enquanto não existir autonomia administrativa (regiões) dificilmente o 'interior' escapará
ao despovoamento paulatino que temos vindo a assistir nas últimas décadas.

Cumprimentos,