Olá,
Não me respondeste à minha primeira carta, mas eu compreendo: os afazeres aí pela capital não deixam muito tempo livre para as coisas boas da vida.
A propósito, no domingo fui à pesca da truta no rio Côa, com a rapaziada do costume. Que pena não poderes ir! Como te deves recordar, para as nossas mulheres é um alívio, que ficam livres de nós durante o dia todo. Elas são as primeiras a querer que a gente vá: "Ide! Ide dar banho às minhocas". E riem umas para as outras, vá-se lá perceber porquê...
Lá fomos, bem de madrugada, para chegarmos ao Côa antes de começar a clarear. Ainda te lembras da delícia que é ver a natureza a acordar? E que pena não ter estado um calor abafado de trovoada ou não ter nevado, que seria ainda melhor. Sabes que nessas alturas as trutas ficam doidas e saem dos buracos nas pedras e raízes do fundo do rio?
Mas não nos estás a ver a contar com a pescaria para almoçarmos, pois não? Nem nós! Os petiscos vêm de casa. À hora em que nos deu fome, só tivemos que apanhar lenha para pôr a carne no grelhador. E o Pintainho, que continua um mestre da culinária, deu-lhe um toque de todas as estrelas do céu. A vinhaça, então, era de estalo. Enquanto o Regador nos relatava "a truta de meio metro" que picou mas conseguiu fugir, o Careca lembrou-se de ti e de como gostarias de estar ali connosco, "mas quis ir para a capital, para junto dos que mandam". O Pintainho, enquanto virava o entrecosto e o pincelava com o seu molho especial, disse o que todos pensávamos: "Isso de mandar é um saco cheio de nada. Quem busca o poder devia vê-lo como deve ser – responsabilidade perante os outros – e não, como é costume, um meio para obter benefícios pessoais". "É mesmo", respondemos em coro. "E ainda há quem defenda a regionalização e que se faça de novo um referendo", admirou-se o Manchinha, enquanto nos desafiava para jogar bolim. O Regador interrompeu a sua saga da truta de setenta centímetros – que fugiu quando já estava a um palmo da margem – para revelar o seu receio que, sem a regionalização, as trutas fossem todas para Lisboa. Imaginas a risada geral?
O Careca voltou a pôr o tema nos carris dos assuntos sérios: "Quem manda não quer perder poder. As regiões provavelmente não serviriam de nada, porque o poder central iria sempre alimentar-se de forma a não perder o seu peso". Mas o Quatro Papos-secos, que até aí tinha estado com a boca cheia, apresentou uma ideia brilhante. Anota aí e apresenta-a aos teus amigos da capital: "Criem regiões administrativas, mas não retalhem o país como estão a pensar. Olhem para Portugal (continente e ilhas) e imaginem uma pizza. Como o Terreiro do Paço é o centro emblemático do poder central, dividam o país em fatias, sendo o centro a pata direita do cavalo da estátua de D. José I, que como sabem é a esquerda, já que a outra está dobrada. Desta forma, cada região terá a sua fatiazinha de poder central... e ninguém se chateia".
Esta teoria do Quatro Papos-secos é tão interessante que até foi com algum pesar que lhe roubámos as trutas que tinha pescado, enquanto dormia a sesta.
Ao fim da tarde, como a faina não deu grande coisa, fizemos o que tínhamos a fazer, para não ouvirmos comentários cínicos sobre os nossos dotes de pescadores: subimos o rio e fomos ao viveiro entre Quadrazais e Vale de Espinho. Aí, foi só pescar o que quisemos, pesar e pagar, já que difícil ali é lançar a cana e não trazer nenhum peixe agarrado.
No carro, de regresso a nossas casas já com o sol posto, o Betes mostrou o seu receio: "Ainda nos descobrem a careca, porque no Côa há a truta arco-íris e estas do viveiro são trutas fário..."
O Quatro Papos-secos desdramatizou: "Informação é poder. Na nossa região, as nossas mulheres nunca poderão saber esses detalhes". E fizemos um voto de silêncio, na qualidade de pescadores.
Bem hajas pelo tempo que dedicaste a esta carta.
E recebe um abraço forte deste que não pesca nada,
Paulo Proença de Moura
Blog "Persuacção"
Não me respondeste à minha primeira carta, mas eu compreendo: os afazeres aí pela capital não deixam muito tempo livre para as coisas boas da vida.
A propósito, no domingo fui à pesca da truta no rio Côa, com a rapaziada do costume. Que pena não poderes ir! Como te deves recordar, para as nossas mulheres é um alívio, que ficam livres de nós durante o dia todo. Elas são as primeiras a querer que a gente vá: "Ide! Ide dar banho às minhocas". E riem umas para as outras, vá-se lá perceber porquê...
Lá fomos, bem de madrugada, para chegarmos ao Côa antes de começar a clarear. Ainda te lembras da delícia que é ver a natureza a acordar? E que pena não ter estado um calor abafado de trovoada ou não ter nevado, que seria ainda melhor. Sabes que nessas alturas as trutas ficam doidas e saem dos buracos nas pedras e raízes do fundo do rio?
Mas não nos estás a ver a contar com a pescaria para almoçarmos, pois não? Nem nós! Os petiscos vêm de casa. À hora em que nos deu fome, só tivemos que apanhar lenha para pôr a carne no grelhador. E o Pintainho, que continua um mestre da culinária, deu-lhe um toque de todas as estrelas do céu. A vinhaça, então, era de estalo. Enquanto o Regador nos relatava "a truta de meio metro" que picou mas conseguiu fugir, o Careca lembrou-se de ti e de como gostarias de estar ali connosco, "mas quis ir para a capital, para junto dos que mandam". O Pintainho, enquanto virava o entrecosto e o pincelava com o seu molho especial, disse o que todos pensávamos: "Isso de mandar é um saco cheio de nada. Quem busca o poder devia vê-lo como deve ser – responsabilidade perante os outros – e não, como é costume, um meio para obter benefícios pessoais". "É mesmo", respondemos em coro. "E ainda há quem defenda a regionalização e que se faça de novo um referendo", admirou-se o Manchinha, enquanto nos desafiava para jogar bolim. O Regador interrompeu a sua saga da truta de setenta centímetros – que fugiu quando já estava a um palmo da margem – para revelar o seu receio que, sem a regionalização, as trutas fossem todas para Lisboa. Imaginas a risada geral?
O Careca voltou a pôr o tema nos carris dos assuntos sérios: "Quem manda não quer perder poder. As regiões provavelmente não serviriam de nada, porque o poder central iria sempre alimentar-se de forma a não perder o seu peso". Mas o Quatro Papos-secos, que até aí tinha estado com a boca cheia, apresentou uma ideia brilhante. Anota aí e apresenta-a aos teus amigos da capital: "Criem regiões administrativas, mas não retalhem o país como estão a pensar. Olhem para Portugal (continente e ilhas) e imaginem uma pizza. Como o Terreiro do Paço é o centro emblemático do poder central, dividam o país em fatias, sendo o centro a pata direita do cavalo da estátua de D. José I, que como sabem é a esquerda, já que a outra está dobrada. Desta forma, cada região terá a sua fatiazinha de poder central... e ninguém se chateia".
Esta teoria do Quatro Papos-secos é tão interessante que até foi com algum pesar que lhe roubámos as trutas que tinha pescado, enquanto dormia a sesta.
Ao fim da tarde, como a faina não deu grande coisa, fizemos o que tínhamos a fazer, para não ouvirmos comentários cínicos sobre os nossos dotes de pescadores: subimos o rio e fomos ao viveiro entre Quadrazais e Vale de Espinho. Aí, foi só pescar o que quisemos, pesar e pagar, já que difícil ali é lançar a cana e não trazer nenhum peixe agarrado.
No carro, de regresso a nossas casas já com o sol posto, o Betes mostrou o seu receio: "Ainda nos descobrem a careca, porque no Côa há a truta arco-íris e estas do viveiro são trutas fário..."
O Quatro Papos-secos desdramatizou: "Informação é poder. Na nossa região, as nossas mulheres nunca poderão saber esses detalhes". E fizemos um voto de silêncio, na qualidade de pescadores.
Bem hajas pelo tempo que dedicaste a esta carta.
E recebe um abraço forte deste que não pesca nada,
Paulo Proença de Moura
Blog "Persuacção"
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