NÓS, O TERRITÓRIO, COMPETITIVIDADE, DESCENTRALIZAÇÃO


A descentralização do Estado implica uma transferência de competências do poder central para outros níveis de poder político, local e/ou regional.

Ou seja, a descentralização é por definição política e por consequência administrativa. Sem descentralização política não há descentralização administrativa. Há, quanto muito, desconcentração administrativa. Isto é, nesta modalidade da desconcentração administrativa, continuamos a ter poder político e decisões políticas centrais para tudo que não sejam competências atribuídas aos municípios.

No presente, além de poder político central apenas temos poder político local, pelo que só é possível descentralizar do poder central (Estado central) para o poder local (Municípios). Para poder haver descentralização para as regiões, isto é, transferência de competências e/ou de poder político de decisão para as regiões, é preciso criar um poder político regional, pois não o temos. Pode colocar-se a questão se o dito poder político regional deve ser directamente eleito e/ou ser uma emanação do poder político local.

A última solução tem sido praticada nas actuais áreas metropolitanas de Lisboa e do Porto. Os resultados não têm sido auspiciosos. Os eleitos devem responder perante os eleitores do território do seu círculo de eleição. Não devem exercer funções que afectem eleitores de territórios pelos quais não foram eleitos. Além do mais, ou se é presidente de Câmara ou de Área Metropolitana. Não deveria ser permitida a acumulação de funções.

Com ou sem descentralização, a questão do território na equação das políticas é essencial para a competitividade do país. Os desafios têm territórios e pessoas. Quando se fala em competitividade do país, em concreto, tem de se falar em territórios e nas pessoas que os habitam. Em cada território as pessoas enfrentam problemas diferentes e há necessidade de afectar a despesa pública de modo diferente.

A intervenção sectorial mais prioritário num território, do ponto de vista da intervenção pública para a melhoria da competitividade e não só, não tem de ser a mais prioritária noutro território. Ou seja, dever-se-ia coordenar, articular e modular as políticas sectoriais do Estado central no território, de forma a aumentar a eficácia da despesa pública.

O contrário é continuar a falar em abstracto dos problemas. É continuar a afectar o dinheiro público de acordo com as pressões dos lobbies corporativos sectoriais, do lado da oferta, em vez o fazer de acordo com as necessidades das populações nos diferentes territórios, do lado da procura. De outro modo, políticas públicas sectoriais sem articulação no território servem as corporações, não servem as populações.

Portugal não é uma região única

Quer queiramos quer não, o território do continente português não constitui uma única região. O continente português não corresponde a uma única área metropolitana, a de Lisboa. Se assim fosse, bastava uma região para identificar os problemas e para equacionar e implementar soluções. Mas assim não é. Na realidade, há mais do que um território, mais do que uma área metropolitana. Uma destas áreas vai de Aveiro a Viana do Castelo, passando pelo Porto e por Braga. Nela habitam mais de 3,0 milhões de pessoas. Este território tem um problema gravíssimo de falta de qualificação da mão-de-obra.

Três dos sectores que no referido território mais empregam mão-de-obra não qualificada estão em crise profunda: têxtil, construção e agricultura. Daí que muitos dos recambiados do Canadá cheguem ao aeroporto Sá Carneiro e não ao da Portela. É que muitos são oriundos desta área metropolitana e não da área metropolitana de Lisboa. Já agora, é nesta área metropolitana que as propostas do Norte 2015 se concentram. O Interior Norte do país é praticamente ignorado pelas referidas propostas. O Interior Norte é uma região rural. A equação da sua competitividade deverá ter isso em conta.

As actuais regiões plano não constituem os territórios de maior interesse para equacionar o desenvolvimento do país, em concreto. Os territórios de maior interesse são regiões geográficas, na acepção de Orlando Ribeiro. Pelo menos, as fronteiras destas regiões plano deveriam ser acertadas, para abrangerem os ditos territórios de maior interesse (do ponto de vista da competitividade e não só), em vez de os partirem a meio, como sucede com a verdadeira área metropolitana que vai de Aveiro a Viana do Castelo, área que não está totalmente dentro da actual Região Norte. Com uma Região Norte com fronteiras acertadas poderíamos tratar o Litoral Norte (a tal área metropolitana de Aveiro a Viana do Castelo) e o Interior Norte como duas ou mais sub-regiões.

As presentes regiões plano, tal qual, são um second best para a organização territorial do Estado central. Este second best é, todavia, melhor do que o caos territorial do Estado central no presente. No presente, a territorialização e desconcentração dos organismos da administração central do Estado tem sido absolutamente desconexa. O facto impossibilita a tarefa de articular políticas no território, entre organismos de um mesmo ministério e/ou de ministérios diferentes, e tornam o Estado central mais vulnerável aos lobbies corporativos sectoriais.

A vulnerabilidade do Estado central

Se juntarmos ao facto acima exposto a circunstância dos círculos de eleição política serem distritais, isto é, não terem correspondência com uma organização territorial administrativa do Estado central com interesse (os distritos, hoje em dia, só têm significado para os aparelhos partidários) e a circunstância da representação política estar afunilada a seis partidos/grandes deputados, isto é, não votarmos em deputados mas sim em partidos que nomeiam deputados, então percebe-se a razão de ser da vulnerabilidade do Estado central aos lobbies corporativos sectoriais e a razão de ser da despesa pública estar fora do controlo.

Ter seis deputados com um voto com o peso eleitoral do partido respectivo ou 230, do modo que as coisas têm funcionado (escolha dos candidatos a deputados ditada, em larga medida, pelos aparelhos partidários; interesse nacional ditado aos deputados por meia dúzia de iluminados, através da imposição da disciplina partidária; esvaziamento das funções de representação, por parte dos deputados, dos eleitores do seu círculo de eleição; não responsabilização dos deputados perante os eleitores do seu círculo de eleição; etc.), teria, na prática, o mesmo significado.

O vazio da representação política não permite a expressão, ao nível do poder político central, dos problemas dos diversos territórios do país. Não permite questionar, por exemplo, o interesse das grandes obras públicas do ponto de vista da competitividade dos diversos territórios do país.

Do ponto de vista da competitividade do país é essencial não só proceder a análise benefícios custos das grandes obras públicas como proceder à análise do seu interesse para o incremento da competitividade, em concreto, dos diversos territórios do país e, por isso, do país.

Há uma incongruência constitucional acerca dos deveres de representação dos deputados nacionais. Constitucionalmente, os deputados devem representar o interesse (dos eleitores do todo) nacional. Todavia são eleitos por círculos distritais de eleição. A disciplina partidária, como solução para esta incongruência, é uma péssima solução. Afunila a representação, coloca o Estado central nas mãos de meia dúzia de iluminados e ao esvaziá-lo de representação torna-o mais vulnerável aos lobbies corporativos sectoriais.

Se os deputados nacionais devem representar o interesse dos eleitores do todo nacional então o seu círculo de eleição deveria ser um círculo nacional único. A alternativa é representarem os eleitores do seu círculo territorial de eleição.

Nessa altura, o interesse nacional, em concreto, seria o resultado da discussão e votação por maioria dos interesses dos diferentes territórios. O caso do Orçamento Limiano foi um caso porque, para além da acumulação de funções, o deputado em questão rompeu com a disciplina partidária enquanto que os outros a cumpriram. Se ninguém cumprisse com a dita disciplina o caso do Orçamento Limiano não teria sido um caso. Na época, esse foi dos poucos interesses explícitos no Orçamento. Já agora, Ponte de Lima constitui um bom exemplo do que poderá vir a ser o desenvolvimento rural de muitos territórios do país.

Chegados a este ponto, o país faria imenso pela sua competitividade e não só se conseguisse reformar o Estado central e dar-lhe racionalidade territorial, isto é, uma organização política e administrativa territorialmente conexa, e se, em simultâneo, conseguisse que a reforma do sistema político lhe trouxesse um poder político representativo dos eleitores dos diversos territórios de interesse. Sem isto, não há competitividade que lhe valha. Com isto, a seguir, é possível ir mais além, de diversas maneiras.

Uma verdadeira desconcentração

Uma das maneiras é a desconcentração conexa e verdadeira da administração central pelos territórios de interesse. A desconcentração que tem existido em Portugal nem sempre tem sido verdadeira. Uma verdadeira desconcentração poria em pé de igualdade as administrações territoriais de um mesmo organismo do Estado. Não criaria organismos centrais com competências verticais (poder de decisão e/ou de sobreposição) sobre os organismos desconcentrados.

O caso da recentemente aprovada lei da água é exemplificativo do que se pretende dizer. A desconcentração da administração da água é desconexa, por região hidrográfica. Nem sequer o é pelas presentes regiões plano. A autoridade nacional da água sobrepõe-se em certas matérias (rios internacionais) às autoridades regionais.

Talvez não faça sentido desconcentrar cada organismo do Estado. Talvez faça mais sentido desconcentrar cada ministério em direcções regionais com competências nos diversos sub sectores referentes ao ministério e correspondentes aos diversos organismos. Talvez faça sentido preservar organismos centrais não desconcentrados (mas, porque não, deslocalizados) com a função de proceder a estudos e dar suporte técnico às estruturas regionais, na faceta que lhes diz respeito, mas sem competências verticais sobre as referidas estruturas regionais dos ministérios respectivos.

Uma verdadeira desconcentração conexa dos ministérios no território permitiria que os ministros ouvissem mais do que uma opinião técnica sobre os sectores sob a sua alçada, tivessem a percepção do modo como os problemas se colocam nos diversos territórios, estivessem mais atentos às performances das suas administrações, articulassem as políticas sectoriais do seu ministério com as de outros ministérios, no território.

Por um lado, isto tornaria bem mais difícil o trabalho dos lobbies corporativos sectoriais. Seria mais difícil termos Humphreys (Série Sim Senhor ministro da BBC) a ditar as políticas a cada ministro, a substituírem-se, de facto, aos ministros, nas decisões. Os ministros tomariam decisões mais informadas. Por outro lado, no seio de um mesmo ministério e entre ministérios, as boas práticas desenvolvidas por umas administrações regionais serviriam de bons exemplos a seguir pelas outras.

Moral da história

A moral da história é que se juntarmos a uma representação política menos afunilada (deputados realmente eleitos) uma desconcentração verdadeira e conexa do Estado teríamos uma revolução, na competitividade do país e não só. Tudo isto sem descentralização.

Há ainda mais possibilidades, para além da desconcentração e sem descentralização.

Contratualizar competências a grupos de municípios (proposta Relvas), a grupos de cidadãos (associações), a organizações não governamentais. Repare-se, nesta modalidade continuamos sem descentralização do Estado.

O passo seguinte seria a descentralização. Pelo princípio da subsidariedade, tudo que possa ser resolvido pelo um nível de poder político mais ‘baixo’, mais próximo dos cidadãos, deve sê-lo. Aqui estamos a falar da criação de um poder político regional e da transferência de certas competências do poder político central para o regional. Estamos a falar de descentralização política e, consequentemente, da descentralização administrativa correspondente.

Por fim, não é possível falar de competitividade e de sustentabilidade (e cada vez mais é assim que se fala) sem falar de fomento e em simultâneo de controlo dos impactos das actividades económicas no território, isto é, de ordenamento do território. Os defeitos portugueses a este nível têm sido vários. No caso da água, é errado dar funções de fomento e de controlo às mesmas entidades. Isso é colocar as ditas entidades sob auto controlo. Globalmente, é errado dar funções de desenvolvimento e ordenamento às mesmas entidades. Isso tem dado coisas como o Ministério do Ambiente a defender barragens.

Estes papéis devem ser desempenhados por entidades autónomas e as contradições resolvidas explicitamente, aos olhos de cidadãos, por quem de direito, os eleitos (poder político). Já agora, escolher um especialista de áreas protegidas para ministro das obras públicas ou ministro da economia seria um escândalo no país. Estranhamente ou não, escolhas em sentido inverso, feitas pelos últimos governos, ainda estão longe de o ser.

Publicado no "Portucale Actual"

Comentários

Obrigada pelo Link!
Felicidades para o vosso blogue!