Descentralizações e riscos


Elisa Ferreira
, Eurodeputada



O discurso que defende que as decisões são tão mais correctas quanto mais próximo do cidadão estiver quem as toma é uma dessas ideias feitas que, de tão politicamente correctas que aparentemente são, ninguém contesta nem se atreve a questionar. E, no entanto, este lema corresponde, a meu ver, a uma deturpação do chamado princípio da subsidiaridade, o qual, longe de advogar a proximidade sem limites do nível de decisão relativamente aos cidadãos que ela afecta, condiciona antes esse processo de aproximação a um limite de eficácia e eficiência, isto é, as decisões devem ser tomadas ao nível mais baixo que garanta a respectiva qualidade.

Ora, se todos sabemos que a proximidade dos problemas aumenta o conhecimento da realidade nos seus detalhes e aspectos mais concretos, também no sentido oposto algum distanciamento é necessário para que as decisões sejam coerentes com um contexto e enquadramento mais amplos, susceptíveis de garantir a independência do processo decisório em relação aos interesses concretos e ainda de forma a que o controlo democrático se exerça sem riscos de retaliação directa ou excessiva personalização de algumas opções.

Em defesa da interpretação que comecei por evocar - a de "quanto mais próximo, melhor" - argumenta-se normalmente que os cidadãos são livres de castigar pelo voto os decisores que abusam, de evocar a lei e, em último caso, de mover processos judiciais por corrupção ou abuso de poder, entre outras motivações.

Há que não fechar os olhos à nossa experiência concreta basta olhar para a ruína em que ficou a nossa costa algarvia (e não é a única…), para o desordenamento urbanístico de que padece a quase generalidade do país ou para as construções autorizadas ou toleradas em zonas inundáveis para se perceber que a decisão, num registo de grande proximidade, não tem só virtudes; quanto às potencialidades dos mecanismos de controlo democrático por parte dos cidadãos, também não são poucas as ilustrações infelizes de interferência política directa e indirecta sobre os órgãos de Comunicação Social (sobretudo de carácter local ou regional), os abusos praticados nos processos de contratação de pessoal, serviços e fornecimentos ou os limites físicos, financeiros e políticos que se levantam à eventual utilização por parte de cidadãos isolados ou em grupo de meios judiciais para defesa de interesses individuais ou colectivos.

Será que as mesmas decisões seriam melhor tomadas a nível central, onde o razoável desconhecimento da realidade concreta leva ao recurso sistemático a mecanismos cegos de carácter administrativo e/ou burocrático, abrindo espaço para que abusos eventualmente mais graves e menos controláveis venham e ser cometidos? Naturalmente que não.

A verdade é que, em Portugal, a ausência (contrariamente ao que acontece na maioria dos países da União Europeia) de níveis intermédios democraticamente legitimados e capazes, nomeadamente, de assumir opções estratégicas de desenvolvimento ou mesmo obras e investimentos de carácter supra-municipal delimitadores e enquadradores das opções do nível municipal, contribui para que o equilíbrio entre diversos poderes que mutuamente se limitam e controlam - equilíbrio este no qual se baseia o funcionamento das sociedades democráticas - se tenha acabado por reduzir a um enquadramento do poder local que, na maioria dos casos, se resume a um activismo da Administração Central e acaba por não ser mais do que legalista, formal, altamente burocrático e frequentemente pouco informado.

Hoje, tal como em outras ocasiões da nossa história, assistimos a um momento em que a Administração Central percebe que tem de largar mão de mais uma série de competências que reteve por tempo demasiado; de novo, a única entidade com legitimidade para as acolher são as câmaras municipais. Assim, está em curso a transferência para o nível municipal de competências adicionais, e que vão muito para além das competências tradicionais, em matérias como o ordenamento do território e licenciamento de obras, a educação, a acção social ou a saúde; são evoluções bem-vindas porque claramente extravasam a capacidade de bem serem exercidas a nível central.

Havendo ainda detalhes que não são conhecidos, há três notas a tal respeito que não posso, nesta fase preliminar, deixar de expressar em primeiro lugar, há que ter a certeza de que as competências transferidas são as que serão melhor exercidas ao nível local e não as que, por incapacidade de assumpção pelo nível central, caem forçosamente no outro único nível de administração com legitimidade democrática, o nível local; em segundo lugar, embora de momento toda a discussão se centre na quantificação dos meios a transferir com as competências, a disparidade de práticas e situações existentes no concreto conduz a que os meios humanos e financeiros não sejam mais do que uma pequena parte das questões que importa controlar em termos da universalidade e qualidade dos serviços prestados; por último, a persistência em continuar a transferir competências para o nível local, sem clarificar quais as que caberão a um desejável nível regional a introduzir no futuro, pode transformar-se numa fonte de perturbação e confusão junto dos cidadãos.

A gestão política dos processos a que acima aludo tem vindo a caber a um experiente secretário de Estado deste Governo, Eduardo Cabrita; não tenho dúvidas quanto à seriedade do seu empenhamento e à lógica dos fundamentos em que assenta a sua acção. Assim sendo, e não obstante, as reflexões que aqui deixei apenas pretendem servir de alerta para alguns cuidados a ter, designadamente na perspectiva da intervenção continuada que terá de ocorrer se a promessa de regionalização for para cumprir…
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Comentários

Anónimo disse…
Gostaria de inckuir os meus comentários ao "post" anterior, com a indicação adicional que se torna imperioso "observar" a prática já desenvolvida pelas actuais Regiões Autónomas dos Açores e da madeira, sabendo que o processo de regionalização do território continental induzirá sempre riscos elevados, não só pela complexidade do projecto em si como pelo aproveitamento de quem não tem nem capacidade política e técnica para assumir funções mais políticas que administrativas e de quem habitualmente aproveita estas ocasiões, com ou sem beneplácito superior, para se poder guindar aos postos do poder político (aqui poderemos mesmo referir: poder central, poder regional ou poder local).
Por outro lado, muitos observadores e comentadores parecem estar a esquecer o facto de as funções políticas regionais (como as centrais e locais) passarem a ser exercidas por quem vier a ser ELEITO e não porquem vier a ser designado administrativamente para exercer uma determinada comissão de serviço. Os eleitores com mandato específico e delimitado no tempo sucederão aos nomeados administrativamente para o exercío de uma comissão de serviço, por um prazo que tanto pode ser como não ser delimitado no tempo, independentemente dos riscos e das vantagens e dos inconvenientes associados a cada um dos regimes apontados: eleição ou nomeação administartiva.
Mas riscos haverá sempre que correr e, no quadro da regionalização, pela experiência já conhecida, os riscos poderão ser mais efcazmente combatidos com a implementação das 7 Regiões Autónomas, herdeiras das 11 Regiões Naturais, do que pelas Regiões Administrativas, herdeira das conveniências burocráticas e corporativistas das políticas centralizadas e centralizadoras seguidas desde há séculos até hoje, desafortunadamente.

Assim seja, amen.

Sem mais nem menos.

Anónimo pró-7RA. (sempre com ponto final)
Excelente texto de Elisa Ferreira.


Assim se "faz" a Regionalização a sério: com honestidade, clareza e convicção!
Anónimo disse…
Assim se escreve sobre a regionalização. A Drª. Elisa Ferreira foi, há muitos anos, uma das principais responsáveis da CCDR do Norte e gostaria que me indicassem as mais valias e efeitos de desenvolvimento sustentado resultantes da sua acção e quais os contributos que deu para o Governo Central ter iniciado a regionalização, até nos termos actualmente constitucionais e que correspondem a uma solução administrativa. Fazê-la implica outras coordenadas, outra dimensão estratégica e política que o texto da Drª. Elisa Ferreira não contempla ao delimitar-se (contentar-se) apenas à descentralização ou desconcentração de serviços, como já tive oportunidade de referir antes, a decidir às "pinguinhas".
Ao texto da Drª. Elisa Ferreira falta-lhe ambição e não tinha necessidade de referir o estado lastimoso da costa algarvia porque neste domínio a intervenção da CCDR's (intervenção administrativa, nunca intervenção política) tem sido não despicienda na forma como as decisões são tomadas a fazer o enquadramento do PDM municipais nos quais se enquadra a orla costeira, a cargo substancial das autarquias, é certo. E o factor principal de todo este processo está na forma relacional entre as entidades políticas regionais e locais, havendo que analisar se é suficiente o enquadramento administrativo dos municípios e freguesias e, com esta solução, fica harmonizada a criação das Regiões Administrativas ou se, pelo contrário, o enquadramento terá que ser mais aprofundado, mais vinculativo e legitimado politicamente com a criação das 7 Regiões Autónomas.
O meu entendimento deste problema, já o conhecem, conduz-me convictamente à adopção de uma solução mais profunda e duradoura com a criação das 7 Regiões Autónomas, a partir das 11 Regiões Naturais.
A falta de ambição ou a sobreposição do enquadramento administrativo sobre o enquadramento político e autonómico mais profundo e legítimo, de forma a subalternizar as nossas regiões em relação às de outros países mais avançados mesmo o nosso limítrofe, só pode descambar na criação das 5 Regiões Administrativas. Como os tempos são dinâmicos e o que é válido hoje jamais o será amanhã, serão tomadas decisões legítimas e legitimadas que colocarão na ordem do dia e da execução política a criação das 7 Regiões Autónomas.

Assim seja, amen.

Sem mais nem menos.

Anónimo pró-7RA. (sempre com ponto final)

PS - Já lá vai o tempo em que as chamadas "autoridades na matéria" eram as únicas a evidenciar as respectivas posições. Ainda continua assim, ams o desenvolvimento das tecnologias de informação revela a disponibilidade de outras revelarem as suas opiniões para combater o que consideram errado ou apoiar o que convictamente têm como certo.
Neste último caso, o apoio menos desejado que se pode dar é o que assenta no "deslumbramento oratório ou escrito", por mais curtas que sejam as frases.
Anónimo disse…
Assim se escreve sobre a regionalização. A Drª. Elisa Ferreira foi, há muitos anos, uma das principais responsáveis da CCDR do Norte e gostaria que me indicassem as mais valias e efeitos de desenvolvimento sustentado resultantes da sua acção e quais os contributos que deu para o Governo Central ter iniciado a regionalização, até nos termos actualmente constitucionais e que correspondem a uma solução administrativa. Fazê-la implica outras coordenadas, outra dimensão estratégica e política que o texto da Drª. Elisa Ferreira não contempla ao delimitar-se (contentar-se) apenas à descentralização ou desconcentração de serviços, como já tive oportunidade de referir antes, a decidir às "pinguinhas".
Ao texto da Drª. Elisa Ferreira falta-lhe ambição e não tinha necessidade de referir o estado lastimoso da costa algarvia porque neste domínio a intervenção da CCDR's (intervenção administrativa, nunca intervenção política) tem sido não despicienda na forma como as decisões são tomadas a fazer o enquadramento do PDM municipais nos quais se enquadra a orla costeira, a cargo substancial das autarquias, é certo. E o factor principal de todo este processo está na forma relacional entre as entidades políticas regionais e locais, havendo que analisar se é suficiente o enquadramento administrativo dos municípios e freguesias e, com esta solução, fica harmonizada a criação das Regiões Administrativas ou se, pelo contrário, o enquadramento terá que ser mais aprofundado, mais vinculativo e legitimado politicamente com a criação das 7 Regiões Autónomas.
O meu entendimento deste problema, já o conhecem, conduz-me convictamente à adopção de uma solução mais profunda e duradoura com a criação das 7 Regiões Autónomas, a partir das 11 Regiões Naturais.
A falta de ambição ou a sobreposição do enquadramento administrativo sobre o enquadramento político e autonómico mais profundo e legítimo, de forma a subalternizar as nossas regiões em relação às de outros países mais avançados mesmo o nosso limítrofe, só pode descambar na criação das 5 Regiões Administrativas. Como os tempos são dinâmicos e o que é válido hoje jamais o será amanhã, serão tomadas decisões legítimas e legitimadas que colocarão na ordem do dia e da execução política a criação das 7 Regiões Autónomas.

Assim seja, amen.

Sem mais nem menos.

Anónimo pró-7RA. (sempre com ponto final)

PS - Já lá vai o tempo em que as chamadas "autoridades na matéria" eram as únicas a evidenciar as respectivas posições. Ainda continua assim, ams o desenvolvimento das tecnologias de informação revela a disponibilidade de outras revelarem as suas opiniões para combater o que consideram errado ou apoiar o que convictamente têm como certo.
Neste último caso, o apoio menos desejado que se pode dar é o que assenta no "deslumbramento oratório ou escrito", por mais curtas que sejam as frases.
Anónimo disse…
É que estás a piorar de dia para dia...
Anónimo disse…
Ainda bem.
Desse lado é que não, só consigo ver pobreza de espírito e má educação.

Assim seja, amen.

Sem mais nem menos.

Anónimo pró 7RA. (sem mais nem menos)