O Norte e a Regionalização - Valente de Oliveira

José Leite Pereira
Alexandra Figueira



Entrevista»
Valente de Oliveira, vice-presidente da AEP


Parece que foi ontem que o Norte estava entre as dez regiões mais industrializadas da Europa. Mas o Mundo mudou, a economia afundou-se e, com ela, a qualidade de vida das pessoas. Valente de Oliveira reconhece responsabilidades no Norte e em Lisboa, mas recusa esperar pela iniciativa da capital. A região tem que formar os seus próprios lideres e "protestar, protestar, protestar" pela defesa dos seus interesses. E convencer o país a avançar com a regionalização. Quem o diz, do alto dos seus 70 anos, sabe do que fala pois estuda o país e conhece o Norte e os seus problemas como poucos

A crise que o Norte atravessa já estava anunciada há muito. Era possível evitá-la?

A crise tem causas profundas, o mundo mudou muito e muito rapidamente. Quem não estava metido no modelo da economia de então tinha mais facilidade, mas nós, que somos uma velha região industrial, estávamos amarrados a tecnologias, a modos de proceder, a mercados. Fomos uma das dez maiores regiões industriais da Europa, ainda há pouco tempo, o que confere uma força muito grande, dá características tecnológicas, de organização, uma mentalidade especial aos agentes económicos. Não seria a mesma coisa se não tivéssemos uma marca tão grande. Mesmo assim, há gente que se soube adaptar muito bem e fazer a mudança com grande determinação.

Essas pessoas estão a criar a dinâmica necessária para puxar a região?

São essas que, para já, estão a aguentar as exportações. Que sejam capazes de arrastar todas as outras, não tenho a certeza, ou antes, parece-me muito difícil. Porque em primeiro lugar não comunicam facilmente os seus segredos. O que é preciso é fazer outras coisas, noutras indústrias mais complicadas. Mas se formos a ver indústrias muito tradicionais, como os têxteis e o calçado, há gente que está a dar a volta. O que é preciso? Descontrair mais, estar aberto a mudanças, à introdução de novos sectores. E estamos com alguma rigidez, nomeadamente na lei laboral. Não se pode fazer a reconversão com leis tão rígidas no campo laboral, que não permitam já a mudança tecnológica e de organização. Quando se aparece sem vínculos para trás é melhor. É um esforço muito grande que é pedido.

(...)

Há líderes no Norte?

Tenho a vantagem de dizer isto há 30 anos: precisamos de líderes não só científicos (que temos), não só empresariais (que temos), mas políticos. Precisamos de líderes regionais. Não pode ser um líder local transformado em regional, sem ser legitimado pelo voto regional. Isso é fatal. O que é que se precisa neste momento? De alguém com poder de convocatória grande, para convocar as universidades, associações, empresas, serviços, para resolver problemas de isolamento. Não há redes, precisamos de alguém com legitimidade para as tecer.

Há pessoas que podem tornar-se esses líderes?

Acho que sim.

Quer identificar?

Não.

Qual o seu perfil?

Têm que ser pessoas que se impuseram na sua profissão, no exercício das suas funções, com prestígio na carreira que tiveram. Os portugueses gostam para líderes de pessoas com prestígio. Têm que ser políticos, mas têm que juntar um prestígio profissional. Há muitas maneiras de fazer redes e temos que ensaia-las todas: ou a partir de um líder com poder de convocatória ou a partir da necessidade e da racionalidade. Um senhor que deliberadamente decide fazer redes.

E é viável surgir uma figura desse género antes de o país ter uma organização territorial e política diferente?

Parece-me complicado, mas não digo que não surja. As pessoas terão alguma reserva porque os portugueses são impiedosos com quem se assume em coisas para as quais ainda não tem legitimidade. As pessoas têm um receio enorme em serem salientes e não vão sê-lo porque isso mata, destrói. Mas estou convencido que se houver quadro formal para aparecerem, eles aparecerão.

O referendo da regionalização foi o desastre que foi…

Não somos bons a fazer referendos.

Teremos que fazer outro...

Ou não. Porquê? Basta que o Parlamento diga que não é preciso.

O desenho das regiões poderá ser o das comissões de coordenação?

Eu só vejo esse, as pessoas já se habituaram ao Norte, Centro, Lisboa, Alentejo e Algarve. [No referendo], Havia suspeitas enormes de uma coisa que lhe foi fatal: a dispersão, para honra e glória de novos líderes regionais pequenos, sem grandes capacidades. Estamos numa situação tão depauperada que partir o que já está fraco é a fraqueza completa. Eu gosto de citar o presidente François Mitterrand, que dizia: foi a centralização que fez a França. Há-de ser a descentralização a impedir que se desfaça. Porque a região de Paris estava a absorver tanta das energias da França que o resto estava a depauperar-se.

É o que acontece a Portugal?

Exactamente. A agravante no nosso caso é que o pólo absorvente, da parte económica, já não está a ser Lisboa, está a ser Madrid! É a parte mais melancólica desta situação. O país todo está a perder. Se se conseguisse fortalecer o país... Naturalmente com o Norte em primeiro lugar porque é aquele cuja evolução foi mais penalizadora.

Se os fazedores de redes só surgirão com um quadro político montado, então a regionalização é urgente?

É muito urgente. Estou inteiramente de acordo.

O roteiro seguido pelo Governo é adequado?

É lento, anúncios de que vai acontecer isto ou aquilo mas não acontece. A regionalização é muito, muito urgente.

Sob pena de?

Sob pena de se esvaziar. Quanto mais se deixa depauperar uma estrutura, mais difícil é voltar a dar-lhe gás.

Partindo de duas premissas suas, a de que a regionalização é urgente e a de que o Governo é lento, o que pode o Norte fazer para convencer o Governo ou o Parlamento a acelerar o passo?

Dando notícias da insatisfação e do afundamento, entrevistando pessoas que achem que podem contribuir para isso e dizer o que pensam.

Aqui, para o Norte, é necessário o quê?

Dar poder à região para que tenha mecanismos de colmatar o que falta: inovação, coordenação, criatividade. E isto, havendo de perto alguém que estimule, sendo politicamente avaliado.

Dos que têm hoje algumas responsabilidades, vê alguém que o possa fazer?

Há, com certeza. Não vou dizer quem, mas há gente que pode emergir para funções regionais e mesmo nacionais. Já houve no passado e não era por uma questão de calendário que deixaria de haver. O que não se deve é perder, enredar em coisas menores.

Os protagonistas políticos do Norte são muito... paroquiais?

Eu não disse isso. Disse que, para a função que se espera das regiões, não se atrevem a saltar o limite das suas responsabilidades actuais porque sabem que lhes seria penoso. Não lhes seria perdoado, se se arvorassem em líderes regionais.

Em Lisboa, cultivou-se o provincianismo do Porto também com base no facto de os dirigentes do Norte não se entenderem. Concorda?

E os de Lisboa, entendem-se? São todos portugueses, é uma pecha nacional a falta de entendimento, de capacidade de unir esforços em torno do que é realmente importante.

Que roteiro seguiria na regionalização?

A solução seria colocá-la na agenda. Por via do Parlamento, retirar-lhe um absurdo referendo que não é necessário, porque se vai cair na tentação de embrulhar a pergunta, sempre de tal maneira complexa, que ninguém sabe o que há-de votar. Na regionalização, tudo estava misturado. Houve muita gente que disse que votava "não" por causa das fronteiras. Tinha que concordar que o mal era da pergunta.

Foi feita de propósito para que a regionalização fosse chumbada?

Seduz-me o maquiavelismo da sua interpretação. Eu gostaria de chegar algum dia à conclusão que a pergunta foi feita desta maneira para dizer que se fez tudo para se fazer a regionalização, e não se fazer. Tiraria o chapéu aos Maquiavel! Era gente tão inteligente, de uma inteligência tão rebuscada… O Parlamento pode fazê-la, com gradualismo, pequenos passos.

Que pequenos passos são esses, em concreto?

Começar por criar o Conselho Regional, eleger o presidente e dizer que é um sistema que aprende. Seria um órgão cujas funções seriam as susceptíveis de serem descentralizadas: a definição da rede rodoviária regional, os portos regionais, o sistema de incentivos à actividade económica, o levantamento das componentes da base económica regional e o seu fomento.

No Parlamento, as regiões que não Lisboa estão em maioria em número de deputados…

É outra lógica, representam o seu partido. Uma coisa que se tinha que alterar, simultaneamente, ou a breve trecho, seria a lei eleitoral. Fala-se muito dos círculos uninominais, em que os deputados seriam à inglesa ou à francesa, o deputado daquela zona… Essa vinculação é muito interessante.

Tem esperança que o Parlamento tome a iniciativa de aprovar a regionalização?

Não só tenho a esperança como desejo ardentemente.

Já disse que "nunca se esteve tão em baixo". Em quê?

Nunca se esteve tão baixo em ânimo. O arquétipo da indústria do Norte mudou radicalmente. Nós éramos muito bons no que fazíamos e, de repente, verificamos que outros fazem tão bem quanto nós e muito mais barato. É a China, a Índia, a Roménia... o Brasil. O que estava associado à qualidade do que fazíamos esboroou-se e as pessoas estão a dar conta disso. Alguns, com energia, dão a volta, investem, fazem ligações com o estrangeiro, universidades, procuram mercados. São magníficos e ficaremos sempre reconhecidos a essa gente.

Mas são alguns. E o resto?

O resto precisa de apoios.

O Norte necessita de políticas feitas à medida?

Necessita de diligências feitas à medida. Estou optimista em algumas coisas. A construção de uma grande fábrica de aerogeradores vai revolucionar por completo Viana do Castelo. O Ikea, em Paços de Ferreira, vai ser uma âncora e não actuará contra o tecido industrial local. Há-de haver muita gente que vai afogar-se, é inevitável e iria de qualquer maneira. Mas os que souberem aproveitar irão ter uma oportunidade única.

Esses são os dois únicos investimentos directos de fôlego, atraídos de raiz para o Norte nos últimos anos largos, por uma agência de investimento que nem sequer tem massa crítica no Porto. Não lhe parece curto?

Lá caímos nós no presidente da região como um caixeiro-viajante. O presidente de um Governo Regional será, antes de tudo, um angariador das potencialidades da região e de investimentos, um facilitador.

Valoriza mais a iniciativa dos agentes do Norte ou o papel do Poder Central?

Não esperar pelo Poder Central, em parte nenhuma, vale a pena. O empreendedorismo e a iniciativa são valores a cultivar. Temos que nos aplicar, na parte pública, em não travar essa gente, estimular a capacidade de iniciativa e fazer com que tudo o que possam ser peias à expansão da sua capacidade de empreender seja arredado.

Estamos a falar de mudanças culturais profundas e, como somos uma democracia feita por partidos... Terão de mudar também, não é?

Os partidos têm que mudar senão vão constatar que estão desligados da realidade que é suposto representarem. Têm que olhar para fora e ver o que está a acontecer, não estarem enquistados dentro deles. Deixar as questiúnculas internas e olhar para fora com mais determinação. E caímos outra vez na lei eleitoral e nos círculos: irem para os seus círculos, verem o que lá se passa, mas não serem apenas os representantes de queixas. Temos que deixar de ser um país de queixas e ser um país de iniciativa. O Norte sempre teve a iniciativa. O Porto não esteve à espera de Lisboa para fazer o Palácio de Cristal, associaram-se os empresários para o fazer. E os comerciantes fizeram o Palácio da Bolsa.

O Norte atingiu um pico nos anos 80 e depois começou a perder terreno. Que momento marcou o início do declínio?

Foi progressivamente quando o Porto deixou de ter intérpretes políticos muito empenhados, nos anos 90.

Qual foi o último intérprete político empenhado?

Não vou dizer.

Ainda está na política?

Não sei, é capaz de não estar e alguns já estarão mortos. Uma perda muito grande (e não quero que se transforme numa entrevista partidária) foi o Francisco Sá Caneiro. Conhecia muito bem o país, o Porto, o Norte. Não sei se o Porto tem ideia do que perdeu com a sua morte.

Cavaco e a regionalização: "As pessoas também mudam"

Vê concordância da parte do presidente da República quanto à regionalização?

Não sei, ele não se pronunciou. Não faço ideia.

Mas acha que se pode fazer a regionalização contra uma opinião eventualmente desfavorável do Presidente da República?

(Silêncio) As pessoas também mudam.

O que se sabe do prof. Cavaco Silva é que a regionalização não lhe era muito agradável...

Isso é verdade. De qualquer forma, há formas de apresentar um problema e uma solução. E suponho que é preciso atender a uma evolução dos problemas (nunca se esteve tão em baixo quanto se está hoje) e das soluções (nunca se insiste numa repartição muito miúda de poder), de maneira que acho que há evolução… Não sei. A resposta directa à sua pergunta é: não sei.

Ota deve avançar e este TGV só serve Espanha

O aeroporto de Lisboa está esgotado e as melhores informações técnicas indicam que o novo deve surgir na Ota. São estas convicções que levam Valente de Oliveira a defender o avanço das obras de construção da infra-estrutura.


Já no caso do comboio de alta velocidade, Valente de Oliveira recomenda "prudência no traçado", que "convém muito aos espanhóis, à viabilização de Badajoz e não convém nada ao Porto". "Isso tem que ficar perfeitamente claro: a solução que convém a Portugal é a fachada atlântica, de Porto a Lisboa". Valente de Oliveira defende o modelo do "T deitado", que liga as duas maiores cidades e atravessa horizontalmente o país, partindo do Entroncamento. Reafirmando que o actual traçado "em nada" contribui para a equidade territorial, apela: "Protestar, protestar, protestar. Os jornais do Porto devem chamar a atenção uma vez e outra".

E por que razão os líderes políticos do Norte não protestam?

Talvez não sejam muito sensíveis, que isto esteja afastado das suas preocupações. É de um âmbito espacial tão grande…

Comentários

Al Cardoso disse…
Uma entrevista em que se revela a lucidez e muito dos deveria fazer pensar!
Anónimo disse…
Boa entrevista. Corajosa e certíssima a referência a Francisco Sá Carneiro. Mas porque razão o Prof não avança com dois ou três nomes para possiveis lideres regionais? A actual democracia ainda provoca "medo" nas pessoas, mesmo quando têm idade e estatuto para "o" não ter. Incrível. Que o novo lider seja um homem do PS, porque terá quase sempre o apoio do PSD. A contrária não é verdadeira. Mas o PS Norte tem alguém com êxito, profissional, pessoal e político? Não. Então esperemos mais umas décadas.
Sam disse…
Boa entrevista, sim senhor. Tanto da parte do entrevistado como da parte do entrevistador, que soube guiá-la bem.

Realço o apelo à necessidade de união entre as várias entidades e instituições, defendida na entrevista. Será vital para a afirmação da região.
Anónimo disse…
Este senhor defende a Ota porque é administrador da Mota Engil, empresa interessada na sua construção. Com regionalistas destes ninguém precisa de inimigos da regionalização. Além de que se acorbadou miseravelmente no anterior referendo.