UMA AJUDA PARA A REGIONALIZAÇÃO

Reforma Administrativa: um modelo para o século XXI

Nos inícios do Verão de 2005, alguns jornais davam conta de que o governo se preparava para mexer na divisão administrativa do país. Como é costume, lançava-se um assunto polémico para a imprensa à espera das inevitáveis reacções. Num
primeiro momento, dizia-se, iriam acabar os concelhos e as freguesias de reduzido número de eleitores.

Em 11 de Fevereiro de 2006, o Diário de Notícias avançava com dados mais concretos: a Lei-Quadro de Criação de Autarquias Locais passaria a chamar-se “Lei-Quadro de Criação, Fusão e Extinção de Autarquias Locais, para pôr em marcha a fusão de freguesias com dimensões mínimas”. A “operação”, segundo o secretário de Estado Eduardo Cabrita, começaria pelas áreas metropolitanas de Lisboa e Porto, nos municípios com mais de 50 mil habitantes. Porém, face à firme reacção da ANAFRE, os jornais passaram a dizer que o governo apenas tinha em vista agrupar algumas freguesias das zonas urbanas. Entretanto, com a aproximação das eleições autárquicas, o assunto praticamente desapareceu da imprensa.

Nos últimos tempos, o que tem estado na ordem do dia é a Regionalização. O assunto, porém, está longe de ter o impacto que a sua importância merece e justifica. O momento é, ainda, o da localização do novo aeroporto de Lisboa. Na OTA ou noutro local, a decisão terá de ser tomada. Quando isso acontecer, a Regionalização fará de novo, seguramente, as manchetes dos jornais.

A Reforma Administrativa, porém, não pode nem deve ficar circunscrita à questão das regiões. No seu âmbito deverá, também, discutir-se a questão municipal.

Quando o Presidente da República Jorge Sampaio vetou a criação dos concelhos de Fátima, Canas de Senhorim e Esmoriz falou na necessidade de se fazer um Livro Branco sobre a reforma administrativa. Para além de criticar a criação de concelhos “à la carte”, afirmou textualmente: “Eu não sou contra a formação de concelhos, mas também acho que pode haver extinção”.

Estas palavras merecem uma reflexão atenta a todos os que se interessam por esta problemática que tanta divisão tem criado na sociedade portuguesa. Ao afirmar claramente estas duas possibilidades e ao sugerir a elaboração de um Livro Branco do movimento municipalista, deu voz aqueles que defendem a necessidade de uma profunda reforma da actual arquitectura administrativa, que, nas suas linhas gerais, remonta a meados do século XIX.

Jorge Sampaio não foi feliz, a meu ver, ao sugerir que o Livro Branco se reporte apenas aos últimos 50 anos, já que o verdadeiro cerne da questão se encontra bem mais atrás, não só em 1836, à época do governo setembrista de Passos Manuel, mas também numa fase posterior, em 1853-1855, isto é, nos inícios da chamada Regeneração.

É vulgar ver elogiar na nossa imprensa o acerto das medidas de Passos Manuel, que de uma penada extinguiu cerca de 500 concelhos. Na generalidade, de facto, a medida foi acertada; mas não se pense que tudo foi feito de forma racional e transparente. Leia-se, por exemplo, o que dizia o deputado Marino Miguel Franzini (que como presidente da Comissão de Estatística e Cadastro do Reino havia participado em várias reformas) na sessão parlamentar de 29 de Março de 1837:

“É notório em todo o reino que eu tenho sido encarregado principalmente deste trabalho [divisão do território], e não é justo que o odioso dos defeitos, que nele se notam, me sejam injustamente atribuídos.

Nesta última divisão [Novembro de 1836], que já é a oitava ou a nona, me recusei a tomar sob a minha responsabilidade o arranjo de novos conselhos, e a sua supressão ou desmembração.

Em grande parte se teriam evitado os inconvenientes que actualmente aparecem, se não houvesse tanta precipitação em querer realizar uma reforma, que tão de perto toca nos hábitos e preocupações dos povos; porém isto não foi minha culpa, porque constantemente me opus, ainda que inutilmente, a tão intempestiva pressa”.

Estas críticas não se diluíram no tempo; cem anos mais tarde mantinham-se, não só a nível popular mas também por vozes mais autorizadas. Recordemos o que dizia Marcelo Caetano, em 1937, no seu Manual de Direito Administrativo:
“Muitas críticas tem merecido a divisão das circunscrições municipais portuguesas: não por estas serem desiguais, que sempre o hão-de ser, mas porque, em sucessivas remodelações, comandadas por interesses de baixa política, nem sempre se atendeu às conveniências e tendências dos povos, de modo que em muitos concelhos não há convergência social, nem coerência de interesses, nem unidade moral”.

Goste-se ou não de Marcelo Caetano, indiscutivelmente um mestre em Direito Administrativo (e é nessa qualidade que o cito), julgo que é neste plano que se deve colocar a criação de novos municípios. Deixar que o assunto se resolva tendo em conta apenas questões economicistas é persistir nos erros do passado e projectar situações de conflito para as gerações futuras. Por isso, quando Jorge Sampaio falava na possibilidade de alguns concelhos serem criados e outros extintos não devia condicionar a dimensão do território a alegados factores de competitividade.

Se vamos por aí, se só a dimensão é que conta para caucionar o desenvolvimento de um território, fará sentido que um país pequeno como Portugal se mantenha independente num espaço tão competitivo como é a União Europeia? Não seria então mais racional estar integrado em Espanha, como o pretendem, desde há séculos, os iberistas dos dois lados da fronteira?

Quer se queira quer não, com os concelhos a situação não é muito diferente. Para quem vive nas grandes cidades talvez isto não seja facilmente perceptível, já que aí, de uma forma geral, não há situações como as que continuam a persistir de norte a sul do país. Por exemplo as de identidade. Esta questão (chamem-lhe provincianismo, se quiserem) não se coloca apenas em termos de país: há uma outra, que nos liga a um espaço mais limitado, que é o nosso concelho.

Se é verdade que muitos dos concelhos extintos no século XIX se integraram harmoniosamente em espaços mais vastos, outros houve que, por um conjunto complexo de factores, não o fizeram.

Mais de 170 anos após a controversa reforma de Passos Manuel (6 de Novembro de 1836), continuam a fazer-se sentir os efeitos desses erros. Valerá a pena, pois, olhar um pouco para o passado e recordar os principais diplomas que estiveram na origem da actual divisão administrativa. O seu conhecimento será seguramente um instrumento útil que permitirá uma discussão mais racional e, quiçá, mais serena e tolerante a todos quantos forem afectados pelas medidas que o governo e o Parlamento, mais dia, menos dia, não deixarão de tomar.

Eis a lista dos principais diplomas que, ao longo dos séculos XIX e XX, foram desenhando o mapa administrativo e territorial do país:

1 - Constituição de 23 de Setembro de 1822. No título VI estabelece a divisão do reino em distritos e em concelhos;
2 - Carta Constitucional de 29 de Abril de 1826. No título VII estabelece que haja Câmaras em todas as cidades e vilas existentes ou que venham a ser criadas;
3 - Decreto n.° 25, de 26 de Novembro de 1830. Cria as Juntas de Paróquia com carácter electivo;
4 - Decreto n.° 26, de 27 de Novembro de 1830. Organiza as Câmaras Municipais de acordo com a Carta Constitucional de 1826;
5 - Decreto n.° 23, de 16 de Maio de 1832. Estabelece o princípio da divisão do território em províncias, comarcas e concelhos; extingue as antigas magistraturas locais;
6 - Decreto n.° 65, de 28 de Junho de 1833. Estabelece a designação e o número das províncias, comarcas e concelhos, ordenando uma nova demarcação destes últimos;
7 - Decreto de 3 de Junho de 1834. Especifica as freguesias pertencentes a cada um dos concelhos designados no Decreto anterior;
8 - Carta de Lei de 25 de Abril de 1835. Estabelece as bases do novo sistema administrativo; divide o território em distritos e concelhos e prevê a possibilidade de uma Junta de Paróquia em cada freguesia;
9 - Decreto de 6 de Novembro de 1836. Procede à demarcação dos territórios concelhios, reduzindo o seu número em mais de quatro centenas e meia;
10 - Carta de Lei de 28 de Abril de 1837. Altera a divisão do território prevista no Decreto anterior;
11 - Carta de Lei de 28 de Abril de 1837. Idem;
12 - Carta de Lei de 12 de Junho de 1837. Idem;
13 - Carta de Lei de 4 de Julho de 1837. Idem;
14 - Carta de Lei de 27 de Setembro de 1837. Idem;
15 - Carta de Lei de 7 de Outubro de 1837. Idem;
16 - Carta de Lei de 22 de Dezembro de 1837. Idem;
17 - Carta de Lei de 2 de Janeiro de 1838. Idem;
18 - Carta de Lei de 22 de Fevereiro de 1838. Idem;
19 - Carta de Lei de 17 de Abril de 1838. Idem;
20 - Constituição de 20 de Março de 1838. No título VIII consagra-se a existência de distritos e concelhos;
21 - Carta de Lei de 29 de Outubro de 1840. A freguesia deixa de fazer parte da organização administrativa;
22 - Carta de Lei de 2 de Dezembro de 1840. Autoriza o governo a proceder à divisão, união e supressão de paróquias;
23 - Decreto de 18 de Março de 1842. Aprova o Código Administrativo; consagra a divisão
do território em distritos e concelhos;
24 - Decreto de 31 de Dezembro de 1853. Estabelece nova divisão das comarcas, julgados e concelhos;
25 - Decreto de 19 de Maio de 1854. Estabelece as regras e dá as providências necessárias para a execução uniforme do Decreto anterior;
26 - Decreto de 24 de Outubro de 1855. Introduz alterações na divisão territorial; reduz o número de concelhos.
27 - Lei de 26 de Junho de 1867. Aprova o novo Código Administrativo; reduz o número de distritos e de concelhos;
28 - Decreto de 14 de Janeiro de 1868. Revoga o Código Administrativo de 1867 e repõe em vigor o Código Administrativo de1842;
29 - Decreto de 6 de Maio de 1878. Aprova um novo Código Administrativo; o território volta a ser dividido em distritos, concelhos e freguesias;
30 - Constituição de 21 de Agosto de 1911. No título IV estabelecem-se as bases da organização e atribuições das instituições locais e administrativas;
31 - Lei n.° 621 da Presidência do Ministério, de 23 de Junho de 1916. Aprova normas para a criação de concelhos e freguesias e a mudança destas para outros concelhos;
32 - Constituição de 11 de Abril de 1933. No título VI estabelece-se que o território
do continente se divide em concelhos, que se formam de freguesias e se agrupam em distritos e províncias;
33 - Decreto-Lei n.° 48.905, de 11 de Março de 1969. Divide o território em regiões
de planeamento;
34 - Constituição de 2 de Abril de 1976. No título VII definem-se as atribuições e competências dos municípios, freguesias e futuras regiões administrativas;
35 - Lei n.° 56/91, de 13 de Agosto. Estabelece a lei-quadro das regiões administrativas.
36 - Lei nº 142/85, de 18 de Novembro. Estabelece a lei-quadro da criação de municípios;
37 - Lei n.° 19/98, de 28 de Abril. Cria as regiões administrativas.
38 - Decreto do Presidente da República n.º 39/98, de 1 de Setembro. O Presidente da República, sob proposta da Assembleia da República, convoca para 8 de Novembro de 1998 um referendo sobre a instituição em concreto das regiões administrativas.

Os diplomas atrás citados provam que as reformas administrativas nunca são definitivas. Enganam-se, pois, todos quantos julgam que os limites de um concelho são eternos e imutáveis. A definição de um território (sob pena de fomentar a ruptura social) tem de ir ao encontro dos interesses da população num determinado tempo histórico.

Se me é permitido, aqui fica um conselho ao secretário de Estado Eduardo Cabrita: medite bem nas palavras de Marino Miguel Franzini e Marcelo Caetano. Não basta conceber de forma tecnicamente correcta um diploma legal para se fazer uma boa reforma. Manda o bom senso que qualquer reforma, para além dos indispensáveis estudos técnicos, tenha em conta as condicionantes sociológicas do território em causa.

É necessário também ter coragem para impedir os jogos políticos que desprezam não só as razões dos técnicos mas também os reais interesses das populações. É preciso, pois, ir mais além, procurar saber das razões que levaram a que no passado uns concelhos tivessem sido extintos e outros criados; perceber o sentir das comunidades afectadas por essas decisões, conhecer as suas reacções e confrontar todos esses dados com a actual realidade sócio-económica.

Essa tarefa é trabalhosa mas não é impossível. Para o século XIX, época do “pecado” original, existem no Arquivo Histórico da Assembleia da República numerosas caixas onde repousam, esquecidas, as muitas representações (isto é, os protestos) das Câmaras Municipais dos concelhos extintos e das respectivas populações.

Quem quiser saber porque existem hoje tantos afloramentos “separatistas” deve, em suma, preocupar-se em compreender o que se passou a partir de 1836. Só olhando atentamente o passado se poderá perspectivar serenamente o futuro.

(...)

António José Queirós

Publicado no "VIMARAPERESPORTO"

Comentários

trigalfa disse…
Excelente. Só falta definir critérios e utilizar alguns dos tais exemplos do passado para provar as teses a defender. Talvez nunca se possa ser exaustivo mas algo de concreto era bom para uma melhor percepção do que está em causa.
Al Cardoso disse…
Um excelente artigo que deveria ser levado em conta pelos politicos, para que se nao cometam os erros passados!