Nevões


Finalmente, o primeiro Inverno a sério do século XXI. Devo confessar que já me estava a preocupar esta mudança tão brusca no clima: se, até aos anos 90, os nevões eram frequentes por toda a Beira Interior (em Vilar Formoso, os antigos contam que todos os Invernos tinham que escavar pela neve para sair de casa), e ocorriam periodicamente pelo resto do país (lembro-me de Paços de Ferreira, a 30 kms do Porto, estar coberta de neve em meados dos anos 90), já no Século XXI, Portugal poucas vezes viu neve fora da Serra da Estrela, a não ser em alguns episódios ocasionais. Fruto das alterações climáticas? O tempo o dirá...

Mas o que me faz escrever hoje são as implicações deste fenómeno na vida quotidiana do país e, nomeadamente, da Beira Interior. A neve é uma das mais-valias desta região, um chamariz que atrai turistas de todo o país em busca deste fenómeno, e dos desportos que lhe estão associados. A marca Serra da Estrela está indubitavelmente associada à neve. É a neve que impulsiona, por estes dias, o turismo no maciço central e nas cidades em seu redor.

O que é vergonhoso para o nosso país são as cenas que nos últimos dias aconteceram devido aos nevões. Como é possível, em pleno século XXI, e com um nevão que até nem é assim tão forte, deixar cortar eixos fundamentais como a A24 ou o IP4, e condicionar a A25 e os acessos à cidade da Guarda, já para não falar das inúmeras estradas secundárias com trânsito cortado por esse país fora.

Se, pela Europa, nevões destes acontecem quase diariamente, como é que as nossas regiões do Interior páram (sim, porque foi impossível entrar e sair de Trás-os-Montes sem ser pelo Douro, durante 2 dias...) com um nevão destes? A resposta poderá ser simples... Nos outros países, cada região tem os seus limpa-neves, os seus centros de limpeza de neve... Aqui em Portugal, a única estrutura parecida é o Centro de Limpeza de Neve da Serra da Estrela (gerido, claro está, por Lisboa...).

Em resumo, para enviar limpa-neves para o Marão, para a Guarda ou para Castro Daire, foram provavelmente necessárias ordens centrais. Será que os responsáveis das Estradas de Portugal, confortavelmente sentados na Praça da Portagem de Almada, são as pessoas mais indicadas para decidir se um limpa-neves se desloca para Castro Daire?

Se a Regionalização estivesse implementada no território nacional, o Governo Regional trataria, in loco, destes assuntos. E, com toda a certeza, situações que demoraram dias a ser resolvidas seriam tratadas em poucas horas...

Outra das vertentes deste problema foi o facilitismo português na sua política rodoviária nos últimos anos, nas regiões do Interior. Algumas das principais estradas do nosso país foram projectadas sem qualquer preocupação com o ambiente ou com estes fenómenos meteorológicos. Assim, temos hoje auto-estradas a passar a mais de 1000 m de altitude, que, para contornar uma elevação, sobem e descem, com riscos evidentes para os automobilistas em termos de segurança, devido às fortes inclinações, e com prejuízos ambientais evidentes, porque quanto mais se sobe, mais combustível se gasta, mais CO2 é emitido para a atmosfera... Veja-se o exemplo da A25 na zona da Guarda: em vez de se duplicar o antigo IP5 e mudar-lhe o traçado a partir do Porto da Carne, porque não se optou pelo tão reclamado Túnel da Guarda, em vez do sobe e desce de 9% de inclinação? E na zona de Castro Daire e da Serra de Montemuro, na A24, porque não se construiu um túnel?

Em Espanha, por exemplo, qualquer elevação é "eliminada" por um túnel, basta ver os exemplos das auto-estradas na zona das Astúrias, Galiza e Cantábria... E continuam a não ter portagens... Em Portugal, túneis de dimensão considerável só temos mesmo o da Gardunha (1580 m), e um pequeno em Castro Daire (818 m), construídos porque não havia mesmo hipótese de passar as auto-estradas pelo meio da serra, e o futuro túnel do Marão (5 900 m), que só foi equacionado depois de mais de 250 pessoas terem perdido a vida no IP4. Por outro lado, em Lisboa e no Porto, zonas relativamente planas, temos cada vez mais túneis... De referir que, na Madeira, novas estradas são construídas com amplo recurso a túneis, em fantásticas obras de engenharia que permitem um atravessamento seguro e rápido de uma ilha anteriormente quase isolada.
Em Portugal, a neve tem que ser a solução e não o problema. Até por aqui se consegue ver a falta que faz a Regionalização. Porque quando não for a neve serão as cheias, e quando não forem as cheias serão os incêndios a mostrar a falta de articulação e de descentralização que existe no nosso país.

Afonso Miguel

Comentários

Este é mais um bom exemplo de como o Interior tem sido maltratado ou mesmo desprezado pelo actual Centralismo Democrático. E digo democrático porque, por força dos votos, esmagadoramente concentrados no litoral, o interior do país, mais despovoado, não consegue ter força eleitoral para inverter este estado de coisas. Veja-se a distribuição distrital dos deputados.

Haveria muito mais a dizer obre esta problemática, mas, por agora, ficamos por aqui.
Anónimo disse…
Fácil... muito fácil... É atribuir um voto a cada habitante do litoral e 20 votos a cada habitante do interior.
O caminho não é este...
Com promessas destas, impossiveis de concretizar, milhares de milhões de pessoas vivem na miséria.
Eu prefiro, antes...
Trabalho, muito trabalho.
Mercado livre.
Justiça Fiscal.
Justiça Social.
Caro Anónimo,

Depois de larguíssimas décadas de centralismo exacerbado que levaram a este estado de coisas - abandono do Interior - muito dificilmente conseguiremos inverter esta situação sem recurso à solidariedade nacional. As regiões mais ricas terão que ser solidárias com as mais pobres. Só assim será possível construir um país mais homogéneo e menos assimétrico.

Cumprimentos,
Anónimo disse…
Caros Regionalistas,
Caros Centralistas,
Caros Municipalistas,

Mais um excelente texto do Afonso Miguel e amplamente ilustrativo das consequências nefastas do centralismo político. Por isso, o problema não se situa (nem pode) no plano do "eu prefiro isto ou aquilo", porquanto uma sociedade só desenvolve com o incremento da produção e da criação de valor, elemento essencial para garantir a distribuição da riqueza produzida por outras vertentes políticas directamente relacionadas com o desenvolvimento da sociedade: educação, saúde, especialização, cultura, justiça (aqui há tanto a fazer na formação dos magistrados, no plano da experiência de vida, da sensibilidade humana e da opotunidade TEMPORAL das decisões: sentenças e acórdãos), património cultural e arquitectónico, património natural e ambiental, património tradicional e linguístico, etc., etc.
Com este sistema de governação centralizado e com os habituais políticos-de-turno (reparem só na forma como têm vindo a tratar a crise financeira, na vertente bancária) não chegaremos a nenhum objectivo de desenvolvimento, mesmo nenhum.
Do exposto, somente a regionalização política e autonómica poderá, juntamente com outros protagonistas políticos - os políticos estadistas, poderá criar condições reais para assegurar o desenvolvimento da sociedade portuguesa.
Tudo o resto não passará de conversa fiada ou confiada, infelizmente.

Sem mais nem menos.

Anónimo pró-7RA. (sempre com ponto final)