Abertura das fronteiras: Que protecção às populações raianas?

Veteranos da raia seca evocam os tempos em que as fronteiras protegiam o sustento
foto: blogue Fronteiras
Quando a Europa escancarou as fronteiras que a cumplicidade entre contrabandistas e guardas gerada no ventre das aldeias tinha franqueado há décadas, o sustento minguou na raia. E a juventude partiu.

"Quando se abriram as fronteiras - e mercadorias e pessoas puderam circular livremente -, um antigo presidente da Câmara do Sabugal disse que tinha fechado a maior empresa do concelho", evoca José Manuel Campos, presidente da Junta de Freguesia de Fóios. Muitos partiram; outros agarraram-se ao que puderam - agricultura, construção civil - e às economias amealhadas nos tempos do contrabando e da emigração clandestina.
No parque de Eljas (ou As Ellas, na fala local), Estremadura espanhola, Jose Rodriguez, 65 anos, mira com respeito o espinhaço de rocha e matos das serras das Mesas e da Malcata que separara os povos. "Ali é Fóios, à esquerda é Vale de Espinho, além Penedono. Era por ali que os portugueses vinham. Traziam de tudo - café, batatas, legumes, sardinhas", recorda.

Virado à muralha serrana inexpugnável ("Subiam e desciam por veredas que só eles conheciam..."), o monumento ao contrabandista faz jus ao relato emocionado dos velhos e sela a benevolência oficial gravada no dialecto raiano: "En memoria de aquelis homis i mulleris de un lau e outru da Raia que, con sua arríria e intercambius gañorim a vida i a amistai sincera dus lugaris".

E que levava aquela malta, noite fechada, serra acima, serra abaixo, muitos crianças ainda ("Comecei de garotinho, tinha 10 ou 11 anos, conta Manuel Aires, 80 anos, veterano de Nave de Haver), rapazes no vigor da vida ("Andei até ir à tropa e migrar", atesta Horácio Monteiro, 61 anos, à jorna entre S. Sebastião e Fuentes de Oñoro), homens feitos e até mulheres ("Fui muita vez, e a minha filha ainda foi buscar muito pão", confirma Miquelina Amaral, 88 anos, de S. Pedro de Rio Seco)?

"Centenas de coisas!", vangloria-se Manuel Aires - "azeite, sedas, roupas de senhora, medicamentos..." Postado à secretária de presidente da Junta de Nave de Haver, António Guardão, 62 anos, confessa: "Contrabandeei de tudo - minério, café, tabaco, peles de raposa, chifres de boi, vacas, cabras, ovelhas, carne, até dinheiro, quando acabaram as fronteiras -, só não passei armas nem droga!"

Do mais modesto carregador (pago à jorna, jornaleiro) ao patrão, todos asseguram a uma só voz que o contrabando não era crime. "Era para ganharmos a vida, que a zona era muito pobre, muito escrava", diz Carlos Fonseca, 72 anos, com muito monte feito entre Vilar Maior e Alamedilla, ora cumprindo a tarefa à risca, ora largando a carga na serra a fugir à guarda. "Se a guarda nos apanhava rebentava-nos os ossos à bengalada", lembra Carlos Martins, 91 anos, de S. Pedro de Rio Seco, evocando fugas com balas a silvarem sobre a cabeça.

Toninho Palos, 64 anos, entrou no contrabando no dia em que fez o exame da quarta classe com distinção. "A prenda foi levar seis quilos de café a Espanha". Um dia, uma bala varou-lhe uma perna. Mudou de vida: abalou para França.

Na aldeia, cinco homens perderam a vida na faina. António Guardão narra o caso do tio, apanhado pelo sargento do posto local já dentro do povo. "Encostou-lhe a pistola por baixo dos braços e disparou". Era miúdo mas não temeu o destino: andou na faina até ao fim. "Não era crime, só não pagava os impostos!"

Em Fóios, José Abílio Lucas, 59 anos, patrão de contrabando de gados com mais de uma vintena de homens por sua conta nas serras entre Penamacor e Almeida, diz: "Era negócio honesto - comprava num sítio, vendia noutro!" Enriqueceu? Ninguém enriqueceu. Ganhava-se a vida, fez-se economias, fez-se casa, ajudou-se os filhos, deu-se-lhes estudos.

ALFREDO MAIA
JN, 14/06/2009

Comentários

Fronteiras disse…
Gostei deste artigo até porque sou raiano ou arraiano e sabem que sigo habitualmente este blogue, mas já agora agradecia que pelo menos se indicasse a procedência da fotografia, quer tenha sido tirada do meu blogue, quer do Panoramio ou então vou ter de começar a cobrar direitos de autor (He. He. He.)

Como sabem, para mim é uma honra que se usem coisas minhas no vosso blogue, mas convenhamos que não há muitos loucos por fronteiras (como eu, que estou a dar em doido varrido), pelo que era fácil saber quem poderia ter tirado fotos deste tipo. Se precisarem fotografias deste tipo, não hesitem em contactar comigo ou então pelo menos indiquem a sua procedência.

De qualquer forma, para além deste pequeno puxãozinho de orelhas, continuo a gostar do blogue, mesmo que não possa participar de forma mais habitual por ter tido nestes meses uma carga de trabalho maior.

Saudações.

Gaiato alentejano.
Caro Gaiato Alentejano:

Agora que reparo, a fotografia é mesmo proveniente do seu blogue. Pelo facto peço desculpa por não ter avisado, mas a pesquisa foi feita no google e, como foi tudo feito um pouco à pressa, nem reparei de que blogue se tratava. O meu objectivo era, até, ir buscar umas fotografias que existem na net deste género, só que são tiradas aqui na zona de Vilar Formoso, na N332, à saída da vila para Nave de Haver.

De qualquer forma, colocarei de imediato a proveniência e a autoria da foto, ou em alternativa retirá-la-ei, como preferir.

Desde já lhe posso dizer também que, como arraiano, sigo regularmente o seu blogue com muito agrado, principalmente, e naturalmente, os artigos que dizem respeito a estas terras de Riba-Côa. É óptimo que se dêem a conhecer recantos fronteiriços tão escondidos, como Vale da Mula/Aldea del Obispo; Batocas/Alamedilla, e, principalmente, gostei que tivessem descoberto a antiga alfândega de Vilar Formoso, em que a fronteira é um STOP. De referir que, até há bem pouco tempo, havia umas cancelas junto ao STOP que estavam fechadas, porém, como estavam desencontradas, a maioria das pessoas "fintava-as" com umas manobras automobilísticas, no mínimo estranhas. Curiosidades da raia. Neste capítulo ainda de referir que, de acordo com o projecto transfronteiriço BinSal (Beira Interior Norte/Província de Salamanca), está já prometida a execução de uma nova passagem transfronteiriça, na zona de São Pedro de Rio Seco (ao largo da estrada N332 V.Formoso-Almeida).

Quanto a este trabalho sobre o contrabando, de referir que toda esta realidade me diz muito, já que o meu avô era Guarda-Fiscal nesta zona (Freineda), sendo que a minha avó vinha de uma família que dava apoio aos contrabandistas: quando os meus avós se apaixonaram e decidiram casar, a clientela do negócio da família dela desapareceu toda e eles tiveram que fechar... Curiosidades da vida!

No seguimento desta temática raiana, sugiro-lhe também uma visita à vila medieval de Castelo Bom (a 5 km de V. Formoso), que, apesar de actualmente ser de 2ª linha em termos raianos, foi durante séculos a praça mais importante na defesa desta zona raiana. Acredite que a visita vale a pena, é uma terra muito bonita e interessante.

Cumprimentos e muitos parabéns pelo blogue.
Fronteiras disse…
Caro Afonso Miguel;

Não faz mal nenhum. Desculpas aceites. Simplesmente achei engraçado usarem as minhas fotografias para ilustrar a mensagem do blogue e decidi reivindicar a autoria.

Quanto à região de Riba Côa é uma região que muito aprecio. Passo por ela pelo menos duas vezes por ano, sempre a descoberta de novidades. Fico muito grato pelas suas sugestões, designadamente o facto de vir a existir uma nova passagem fronteiriça. Quanto ao património, a verdade é que esta região tem tudo do melhor quanto a fortificações. Deviam estudar isso, porque acho que não existem tantas concentradas em toda a Europa.

No meu blogue tento sempre que exista um equilíbrio entre as diferentes regiões, se bem, como é óbvio, o Alentejo sobressai por tê-lo mais a mão. No entanto, devo referir que ainda guardo fotografias para novas mensagens sobre lugares tão emblemáticos como Almeida e o Sabugal.

Quanto ao castelo de Castelo Bom, importa referir o facto de estas terras terem sido leonesas até o Tratado de Alcanices de 1297 (para sermos mais exactos, em 1295), pelo que também ficam abrangidos pelo conceito de "raia".

Gostei particularmente da sua história. Histórias de solidariedade, de ajuda nos tempos da miséria, histórias que também oiço cá no Alentejo e que nos lembram que felizmente vivemos tempos melhores, mas que temos de lutar para que o nosso legado para as gerações futuras seja o de um esforço conjunto para um mundo melhor. Acredito que esse mundo é possível. Só é preciso ter vontade. E é claro, isso passa porque os territórios possam ter poder de decisão. Eu também concordo com uma região da Beira Interior: uma região que ainda tem muito para desenvolver e tem uma situação geográfica privilegiada, de porta para Europa, que não está a ser aproveitada.

Cumprimentos de amigo.

P.S. A fotografia da estrada de Vilar Formoso para Nave de Haver é capaz de ser minha, já que tirei uma dessas características e pode ver-se também no blogue.
Fronteiras disse…
Esqueci-me de dizer, finalmente, que os autores deste blogue têm completa liberdade para tomar as fotografias do meu caso precisem.
Caro Gaiato Alentejano:

Aqui na Raia da Beira Interior, histórias como a da minha família são bastante frequentes. São vidas inteiramente ligadas à Raia, e muitas vezes de migrações dentro da própria Raia. Também o meu avô, apesar de beirão, passou parte da sua carreira no Alentejo, mais precisamente no posto da Amareleja.

Quanto às fotos, muito obigado pela colaboração. A Beira Interior é uma região com potencial desaproveitado, por falta de interesse dos políticos a nível nacional. Com uma regionalização a cinco, tudo ficaria na mesma: não interessa a Coimbra explorar o potencial da Beira Interior, está tudo muito longe... A única e a melhor solução para o desenvolvimento é o estabelecimento de uma região própria, com uma identidade raiana inegável e um futuro promissor.

Viva a Beira Interior!
Vivam os Arraianos!
Viva Portugal!

Com os melhores cumprimentos.