Linha do Tua: a espinha dorsal do Nordeste Transmontano - III

(continuação)

FIM DE LINHA

Lá foi seguindo a caminhada… e eis que se avistam os miniautocarros que haviam de levar o grupo até ao Hotel Rural de Pombal para o lanche típico que antecederia a visita ao castelo de Pombal e que o grupo do Porto já não pôde acompanhar. Viagem que decorreria bem para os que conseguiram um lugar sentado, menos confortável para os que tiveram que fazer a viagem de mais ou menos três quilómetros num percurso de subida íngreme de pé. Mas também para alcançar a boleia que haveria de transportar os caminheiros até às mesas bem recheadas de produtos tradicionais e de sabores locais era preciso subir… Para o que foi necessário recuperar forças – bem perto da Estação de São Lourenço foi feita uma pausa recheada de queixumes e histórias do passado, mas também de comentários sobre o espectáculo natural que tinha sido partilhado – e quase num último fôlego lá foi atingido o objectivo. Havia ainda as termas romanas de São Lourenço para visitar, mas primeiro uma passagem pelo café local que estava aberto. Tomar um café, beber uma água, ir à casa de banho. Depois uns minutos de descanso e chegou a altura de visitar as águas termais, numa aldeia quase abandonada. Sobre o que José Manuel Pavão assinala o estado de decadência em que se encontra “e, no entanto, tem umas águas termais”, lembra. “Eu nem me refiro, como médico, ao potencial terapêutico das águas. Vejamos a obra do homem! Há ali oliveiras plantadas em canteiros, cada um com uma única árvore… Isso não merece respeito?!”, questiona.

Segundo informações recolhidas pela Campo Aberto aquando da preparação da iniciativa, existe interesse na exploração das termas desta aldeia pacata – que naquele domingo que antecedia o feriado de 5 de Outubro viu a sua calma alterada por tantas pessoas, miniautocarros e até um carro de bombeiros –, mas que estão a degradar-se por não ser dada a concessão a nenhuma empresa. O que permitiria explorar todo o potencial turístico que o local tem, até porque o acesso pode ser feito de carro pela estrada que o grupo de visitantes havia de percorrer. As declarações do então deputado e candidato à Assembleia da República por Bragança, Mota Andrade, serão elucidativas do pouco caso que os governantes fazem de toda esta situação e das consequências que ainda possam advir. Quando questionado sobre se o comboio faria parte do programa eleitoral do PS, respondeu de imediato que “não. Nem o PS, nem ninguém”, argumentando com a falta de passageiros. José Manuel Pavão, por seu turno, considera “curioso” falar em números e lamenta o desconhecimento demonstrado: “É curioso assinalar o número de pessoas que se movimentavam na linha e como isso contribuía para a dinâmica turística e para o movimento comercial de Mirandela. As pessoas não sabem”! E lembrou as palavras daquele governante que se candidatava pelo Círculo Eleitoral de Bragança: “Aqui há tempos um deputado do distrito de Bragança teve uma infeliz sentença dizendo que viajavam no comboio quatro pessoas por dia e duas cestas de figos. Perante tanto desconhecimento e tanta má vontade, que não ilustra o papel dos deputados, era interessante e convidativo que se fizesse uma pesquisa real do movimento de passageiros”, desafia. “Eu próprio fiquei surpreendido, pois havia pessoas que procuravam viajar e não tinham bilhetes porque as composições não comportavam mais passageiros”, adianta.

Por outro lado, o filme que tem a Linha do Tua como protagonista não questiona os números, as questões que espera ver levantadas depois de o seu filme ser visto são outras. “O filme coloca-se do lado mais fraco da questão, que são as cerca de 60 pessoas que se supõe que viajavam diariamente no comboio, entre trabalhadores, estudantes e turistas que escolhiam o comboio e a Linha do Tua como meio de transporte. Podem ser poucas pessoas, mas são portugueses como os outros e não têm direitos?! E não estou a falar em termos poéticos”, assegurou. “Estou a falar é de outra questão que se deve levantar: mas porque é que tem poucas pessoas”? Já a propósito do comentário do deputado, Jorge Pelicano “gostava de ter estado ao seu lado para lhe perguntar como é que acha que se desenrascaria caso ficasse sem o seu carro, se fosse o único meio de transporte possível”. “O documentário já estava a ser filmado quando se dá o anúncio da construção da barragem, anúncio que ditaria a morte completa da Linha do Tua”, recorda. E então “o filme é construído do ponto de vista de que as pessoas usam o comboio para as coisas mais simples da vida, do quotidiano, dificuldades que quem vive nas cidades grandes não sente”. O filme/documentário «Pare. Escute. Olhe.» que não contém entrevistas, nem ‘voz-off’, onde a equipa quis interferir o menos possível, “é muito cinematográfico! Acompanha de forma mais intimista a vida e o quotidiano dos habitantes” de Vilarinho das Azenhas, concelho de Vila Flor, distrito de Bragança. “Muitas vezes colocávamos a câmara nos locais e deixávamos as coisas acontecerem, tentámos não interferir muito. Por isso, as ‘personagens’ são as pessoas que serão afectadas pelo fim da Linha do Tua”, explicou. Esta maneira de interagir pretendeu transportar da “forma mais real” para o que chama “o progresso” a realidade daquele Portugal esquecido “e tentar mostrar que é preciso preservar, mas para fixar, através da mudança de gestão da linha, de modo a trazer mais-valias para a região”.

Jorge Pelicano despertou para esta realidade da mesma maneira que aquelas mais de cem pessoas decidiram percorrer quase 16 quilómetros da Linha do Tua a pé, numa tentativa de despertar (outras) consciências e alertar para o futuro que se está a traçar: o encerramento definitivo da linha e a construção da barragem de Foz Tua. Foram notícias que há muitos anos têm vindo a dar conta do encerramento de vias ferroviárias, sem que se pare, escute e olhe o futuro das populações, mas também os patrimónios culturais. “Que herança de património vamos deixar”, questiona José Manuel Pavão. Preferindo “fugir aos aspectos sentimentais e afectivos, porque esse é olhado com ironia”, convida à visita porque “não há capacidade verbal de transmitir o conteúdo desta realidade”. “Mas se as pessoas vierem, acontecer-lhes-á como a estas muitas pessoas que aqui estão: sentiram a natureza e viram com os seus próprios olhos. Ficaram plenas de espectáculo da natureza! E é isso que nós queremos defender!” José Manuel Pavão não é actor, nem personagem do filme de Jorge Pelicano. É um defensor da manutenção da Linha do Tua, da sua reconversão, do seu aproveitamento para o desenvolvimento da região, e apresenta argumentos técnicos: “Há pessoas avalizadas e organismos que dizem que se, porventura, esta linha ferroviária, repito e adjectivo, uma obra excepcional da engenharia portuguesa, fosse recuperada e modernizada podia ligar o Vale do Douro, com todo o seu potencial, à linha que passa por trás de Bragança”. E a par do convite para que a “visitem enquanto têm essa possibilidade”, faz um apelo: “Isto era de pensar. Não falemos em defender, como estas pessoas que aqui se encontram hoje, mas que se reflicta”. Ainda assim, acredita que “o caminho não é o que está a ser seguido em que os governos legislam regras imperativas, em que as poderosas organizações públicas, como a EDP, determinam e se apropriam dos terrenos e cujo horizonte é o lucro e a obtenção de energia”. Mas também aqui José Manuel Pavão apresenta alternativa, citando “técnicos de muito valor que dizem que o quantitativo da energia eléctrica que se vai obter com a projectada barragem podia ser substituído por uma alteração técnica das barragens do Picote e de Miranda – está isso tudo estudado – e com uma pedagogia da poupança. E se isso fosse feito pelos governos de Portugal, naturalmente que o vale continuaria incólume e poderia ser desfrutado pelos portugueses”. Seguindo a lógica que está a ser projectada, reafirma que “vamos estragar um vale, vamos inundá-lo de água, vamos alterar a natureza e vamos empobrecer ainda mais esta região”! E por tudo isto assevera que “valia a pena parar, explicar e poupar”!


CONHECER

Da parte dos organizadores “este passeio pretendeu dar a conhecer o património da região, em especial a Linha do Tua, e todo o seu valor histórico, social, ambiental e cultural”. Tem também um lado solidário: “Ao mesmo tempo pretendemos apoiar os que há muito se debatem pela defesa deste mesmo património, mostrando que este é valorizado não só pelos ‘da terra’, mas por muitas pessoas espalhadas pelo país e além fronteiras”.

Regressando à questão que considera essencial (porque é que viajam poucas pessoas na linha), Jorge Pelicano lembra “o desinvestimento que foi feito ao longo do tempo na ferrovia: horários desajustados e sem ligações directas à Linha do Douro, o que obrigava as pessoas a esperarem uma hora pelo comboio, a par da grande degradação das infra-estruturas, que só assim se explicam os acidentes que têm acontecido”. “Tudo isto afasta os passageiros”, constata. E concorda que “esta degradação deve-se aos responsáveis políticos e às empresas que lucram com estas situações sem pensarem nas populações locais”. Reiterando a grande questão do filme, o realizador que fez, em 2007, ‘Ainda há pastores?’ insiste que é preciso tentar definir o caminho. “Queremos um país todo igual, ou um país diferenciado com características próprias e culturalmente rico? Um país em que se vamos a Lisboa visitamos os Jerónimos, se formos ao Alentejo vemos as searas”… Na região do Tua vêem-se vales, planícies, montanha e tudo o mais que não se consegue descrever. “Ou, pelo contrário, queremos um Portugal todo igual”? E refere que neste caso, com a construção de mais uma barragem, será destruída parte da identidade do Nordeste Transmontano com a agravante “de que mais uma vez não é a favor da região, mas para beneficiar, também mais uma vez, o Litoral”. E lembra que “as indemnizações não fixam população”, por muito que as pessoas afectadas se encantem com o dinheiro que recebam.

Pragmático, o jovem realizador concorda que “a linha como estava não servia ninguém, mas apenas pelo centralismo das nossas políticas”! E se pactua que “o saudosismo não é o melhor caminho”, acredita que “com investimento na linha, o futuro passe pelo turismo ferroviário”. E lembrou “Espanha e outros países, onde se alterou a gestão da linha estreita com vista à promoção turística”. E foi assertivo quando afirmou: “Eles investem no sentido da preservação e desenvolvimento, nós destruímos em nome de um progresso que apenas afastará mais as pessoas do Interior”. E alerta que “não podemos esquecer que a construção da barragem vai submergir um património com mais de 120 anos”. Ilustrando tudo o que defendeu na conversa com o jornal As Artes entre As Letras recordou: “Quando finalizámos o filme, fomos à procura das pessoas que aquando do anúncio do fecho da linha se manifestaram contra, mas já não as encontrámos, porque já não estão lá. Também já tinham sido obrigadas a tomar outros rumos. E percebemos o ritmo acelerado de despovoamento. E as que ficaram, maioritariamente idosos, estavam resignadas com o que está a acontecer, porque já estão habituadas a que as decisões sejam tomadas sem benefícios para eles e sem serem ouvidos os seus argumentos”.

21 Outubro 2009 | As Artes entre as Letras

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