Linha do Tua: a espinha dorsal do Nordeste Transmontano - I

Mais de 120 anos de cultura em risco


Em busca da cultura e do património que se perderá se a Linha do Tua se perder numa barragem, mais de uma centena de pessoas percorreram a pé quase 16 quilómetros. É hora de reflectir no que há ainda a dizer sobre este património natural e humano. «Pare. Escute. Olhe.» é o nome do documentário de Jorge Pelicano que tem precisamente a Linha do Tua como fio condutor de uma chamada de atenção para o que José Manuel Pavão diz “valer a pena parar, explicar e poupar”!

Isabel Fernandes (texto)

«Pare. Escute. Olhe.». Num reflexo de preocupação com a desertificação do Interior do país, Jorge Pelicano propõe que se reflicta no que se quer para Portugal. E como que aceitando o desafio do realizador, mais de cem pessoas caminharam cerca de 16 quilómetros da Linha do Tua (partilhada com a Linha do Douro) – entre Tua e S. Lourenço – para perceber a beleza, a cultura e o património que aqueles vales, planaltos e serras do Nordeste Transmontano encerram. A proposta de percorrer aquele trilho a pé foi feita pela associação Campo Aberto e aceite por vários interessados na descoberta. Alguns dos participantes já tinham posição formada e defendem a preservação, outros foram tentar perceber as razões da defesa e da proposta de encerramento e construção de uma barragem. Eram sensivelmente 9h50 quando os mais de cem caminhantes se juntaram na estação do Tua – segundo a organização, 47 chegaram de autocarro do Porto e 56 vieram de outros pontos do país. O grupo era grande e muito heterogéneo: homens, mulheres, crianças e até um animal de estimação (um belo e jovem labrador). A expectativa era elevada, os ânimos estavam no auge e os participantes dirigiram-se ao quilómetro zero, onde posaram para a foto de grupo. Antes houve tempo para algumas recomendações. Cerca das 10h30 e divididos em quatro grupos, com cinco minutos de intervalo entre as partidas, os participantes iniciaram o percurso sobre as traves da linha ferroviária. Mas o percurso só foi possível a quem resistiu, logo ao quilómetro 1,4, à travessia do Viaduto das Presas. A vista era linda – como dizem e as fotos comprovam –, provou-se porque muitos dizem que é “única”. Mas as olhadelas não eram possíveis a todos. Os suores frios, a inibição de caminhar, todo um conjunto de emoções e sensações que se viveram logo ao primeiro quilómetro. Se para uns foi deslumbrante ver tudo bem do alto, a outros faltou a coragem de olhar e apreciar, e houve mesmo o pânico de iniciar aquela marcha e a necessidade de desistir, foi apenas uma pessoa, por vertigens. O que a Campo Aberto recomendou logo nos conselhos iniciais e no mapa orientador que foi entregue aos caminhantes: “Aconselhamos a quem não se sentir confortável na passagem do viaduto que não prossiga a caminhada. Um bombeiro acompanhará estes participantes até à camioneta que permanecerá aproximadamente uma hora à espera na estação Foz-Tua”. Os conselhos eram vários e pormenorizados por parte dos organizadores. Afinal, uma das pretensões era passar um dia descontraído e sem incidentes… e todos os cuidados foram tomados nesse sentido. Para além de vários elementos da Campo Aberto e de outras associações e movimentos que apoiaram a iniciativa, houve elementos dos Bombeiros de Carrazeda de Ansiães que acompanharam o percurso, não no terreno, mas em vias paralelas para que a ajuda fosse possível quando necessária em dois pontos designados de desistência.

Passado o primeiro obstáculo, eis que surgia o segundo! Cem metros depois do viaduto, o percurso entra no Túnel das Presas (o primeiro de cinco). Às escuras, com poucas e pequenas lanternas lá se foram encontrando as traves para poisar os pés, que ainda não reclamavam descanso, mas já percebiam as dificuldades futuras. Entre conversas e silêncios, chegou um novo ponto de desistência, o Apeadeiro de Talhariz, onde estava uma viatura todo-o-terreno (da responsabilidade dos bombeiros) para transportar os desistentes. Não foi possível ver a viatura, uma vez que esperava a alguma distância, pois o acesso é impossível até esse ponto. Nesta fase não foi acolhido ninguém. Todos estavam em condições de continuar e lá foi o grupo, muito disperso ao longo de todo o caminho, pois os ritmos são diferentes e os níveis de resistência também. Enquanto uns iam acelerando, outros iam fraquejando, mas até ao Apeadeiro de Castanheiro não houve possibilidade de rever as condições e continuar era a solução. Entre os dois apeadeiros, ainda houve obstáculos a enfrentar. Três túneis – de Talhariz (aos 4,4 Km), das Fragas Más I (aos 5,5 Km) e o Túnel das Fragas Más II (5,7 Km) – e um viaduto, das Fragas Más (aos 5,6 Km do percurso). E eis que aos 7,6 quilómetros, lá pelas 12h45, foi altura de o anunciado encontro com os bombeiros para possíveis desistências (Apeadeiro de Castanheiro). E foram três pessoas a aceitar a boleia, uma por cansaço e uma por dificuldades extra: a sola da bota descolou-se. O terceiro desistente foi o marido desta, que não continuou por solidariedade. E este era – fomos bem avisados – o último ponto onde seria possível desistir, uma vez que os acessos a partir daí são inexistentes e o apoio, mesmo em todo-o-terreno, impossível.

Aos 9,2 quilómetros surge o Túnel da Falcoeira e eram escassos os metros a separar-nos do local de pausa para o almoço-piquenique, da responsabilidade de cada um. Era um espaço com alguma sombra, belos sobreiros, um verdadeiro convite ao descanso e a saciar a fome que a natureza e o ar puro aumentam. Libertar as mochilas do peso era também fundamental, pois o aviso, mesmo levado em conta, de evitar levar muito peso nada serve. Depois de quase 10 quilómetros de caminhada, todas as gramas se transformam em quilos e à medida que se continua, chegam a pesar toneladas. Foi aí que os caminheiros satisfizeram as necessidades de alimentar o corpo, já que a alma teve sempre alimento, e de descansar. O tempo previsto para o repasto era de 30 minutos, mas acabaria por variar de pessoa para pessoa… pouco mais de dez minutos para alguns. Era hora de retomar a marcha, porque o corpo amolece e torna-se mais difícil retomar o ritmo. O sol, contrariando as previsões de temporal para esse dia (4 de Outubro), brilhou cedo e aqueceu a caminhada. A sede apertava e os líquidos iam sendo repostos, sem o mínimo de hipótese de os ir libertando ao longo do percurso.

(continua)

21 Outubro 2009 | As Artes entre as Letras


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