Porto sem ideia nem elites

1. O Porto é uma ideia muito antes de ser uma cidade. Todos os lugares são feitos das memórias emprestadas pelas várias gerações que a eles pertenceram. Há tempos, num debate, o professor Hélder Pacheco disse-me que nenhuma cidade, muito menos o Porto, se reduz aos seus monumentos, às suas ruas - o Porto, assim, seria as pessoas que nele estão e que o sentem como coisa sua, já que as memórias dependem da gente que as conserva e não das pedras inanimadas por onde elas passam.

Julgo que a ideia do Porto, embora se sustente na reciprocidade entre as coisas que compõem os lugares e as pessoas que lhes dão significado, não se abrevia na Ribeira, nem na Baixa nem nos locais onde ainda resta a vista inigualável que contempla o apertado Douro a ser tragado pelo imenso mar. É-se do Porto dentro e fora dele, nas cidades vizinhas ou nas mais afastadas, mesmo longe do país.

Do mesmo modo que ninguém é do Porto apenas porque aqui nasceu, trabalha ou vive. Para se ser do Porto, quer se esteja no Algarve ou em Boston, tem de se tratar a liberdade por "tu", de se estar naturalmente imbuído da saudável rebeldia que impede a admissão de sujeições ainda que estas surjam embrulhadas em ternas blandícias.

O Porto significa autonomia, autogoverno dos assuntos que lhe são próprios, irrequietude perante os poderes externos. Estriba-se na memória milenar de uma cidade de comerciantes que se regia por leis e costumes locais, em que os nobres não podiam pernoitar e em que a pata suja da Inquisição nunca mandou. Muito ao contrário do resto do país.

A ideia do Porto sempre contrastou no cinzentismo generalizado de um país servil, desbarretado e passivo, deleitosa e incessantemente em estado de sujeição perante qualquer lógica centralista.

Mas o Porto nunca quis impor a sua diferença aos demais - sempre foi avesso a tendências colonizadoras, bastando-se a si próprio e prescindindo de impingir a lógica que julga sua a outros espaços tradicionalmente mais submissos. Todavia, enlaçado num país de cerviz curvada, todos os que prezam a liberdade e estão dispostos a lutar por ela partilham a ideia do Porto, sabendo-o ou não. Hoje, esta concepção, temo bem, está mais presente fora da cidade do que junto daqueles que nela ainda estão.

2. As ideias permanentes devem ser amparadas pelas elites - dizia Raymond Aron que "Uma sociedade é tanto mais eficaz quanto maior número de elites consegue fixar".

Contudo, se as elites nacionais se assemelham a uma caricatura indigesta, as do Porto parecem ter-se sumido na decadência que tem assolado a cidade. O Porto mantém pessoas de qualidade mas estas não constituem um corpo, espontâneo ou construído, que actue numa prática concertada em favor de interesses ou de ideias comuns. As pessoas de escol do Porto prescindiram de pensar no seu sentido colectivo, já não têm metas nem missões estratégicas exequivelmente comungáveis.

Esta é uma distinção importante - no Porto existia uma simbiose quase perfeita entre as suas elites e a expressão da vontade de todos. O último exemplo, à guisa de canto de cisne, foi a revolta espontânea de artistas, intelectuais e gente de todas as condições e costumes, a propósito da cedência do Coliseu em 1995. Quinze anos depois, parece ter passado uma eternidade.

Rui Rio já engendra pretextos pífios para recusar um novo hospital de crianças - alguns, poucos, protestaram mas a maioria manteve-se num silêncio apático e bovino. Entretanto, o Governo teima em abalroar a região entre Aveiro e Caminha com portagens nas vias que tinha jurado nunca virem a ser pagas - em Junho, muitos reclamaram mas agora parece descido sobre as pessoas um véu pardacento de capitulação que leva a admitir que esta região seja discriminada já em Outubro enquanto o resto do país só pagará as Scut não se sabe bem quando.

A aquiescência subserviente face aos desmandos dos maus governos, sejam locais ou central, é um sinal distintivo que contrasta com o modo de ser que fez o Porto. Quando nada parece beliscar a modorra das elites e o comodismo de quase todos, constata-se que a ideia do Porto se está a tornar uma recordação de tempos que já lá vão.

|JN|
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Comentários

Unknown disse…
Excelente texto de Carlos Abreu Amorim, a quem felicito. Carlos Amorim, com quem não me identifico politicamente, é daquelas pessoas que sempre ouço com atenção, pois sempre tem algo de importante para dizer e sabe dizê-lo.Esse Porto, não o de Pinto da Costa e quejandos é, se me permitem, de todos nós. Maravilhosa cidade.
Caro Zé Lourenço,

Sem a política, completamente de acordo consigo.

Cumprimentos,
Anónimo disse…
Caros Regionalsitas,
Caros Centralistas,
Caros Municipalistas,

Se ele o diz e escreve é porque é verdade.
Sem pachorra, para isto.

Sem mais nem menos.

Anónimo pró-7RA. (sempre com ponto final)
Caro Anónimo pró-7RA.

Independentemente da pachorra para ler o CA Amorim, o que é certo é que, quem conhece a história do Porto, até meados do sec.XX, verá que ela é feita de homens com outra estaleca. Foram homens destes que se organizaram e se associaram para erigirem instituições como o Palácio de Cristal (antigo) ou a Maternidade Júlio Dinis onde a coroa (rei) se quisesse estar presente na inauguração tinha que contribuir.

Cumprimentos,
Anónimo disse…
Caro António Felizes,

Mesmo assim, os contributos de CAA deixam muito a desejar pela falta de ponderação política de longo prazo. A periodicidade dos comebtários a que alguns nos habituaram não compadece da necessiadde de termos mais alguém que nos ensine a racicionar em permos de médio e longo praz. Por mais artigo e comentários que dê aos leitores nunca terão um prazo de vida longo, pela urgência em chegar cedo demais a determinados objectivos.
Estes objectivos nunca são os que se podem associar ao desenvolvimento da nossa sociedade, através da regionalização autonómica. E é pena, com personalidades bastante inteligentes para o meio em que vivemos e sempre na berra, onde os comentários tendem mais para aspectos de natureza pessoal do que para os fenómenos objectivos de natureza política.

Sem mais nem menos.

Anónimo pró-7RA. (sempre com ponto final)
Anónimo disse…
Tem razão, o CAA.

Pensava que era só eu que tinha esta ideia de como ser do Porto.
Fui ao Porto pela primeira vez, no último fim de semana de 1967.
Visitei a cidade e assisti a um concerto do Quinteto Académico, Rosita e Aurélio Perry, se a memória não falha.
Fiquei admirador da cidade. Portuense.
Tive e tenho no Porto, gente amiga e conhecida na Comunicação Social, Turismo, Desporto, Intelectuais, Empresários e Sindicalistas.
Aí comemorei o 1º de Maio de 1977.
O Porto é isso.
O Carlos tem razão.
Luzograalense disse…
Uma correcção: A Inquisição realizou um Auto de Fé no Porto. Foi a acção do Bispo no poder central, pressionado por Burgueses que limitou a partir daí a Inquisição no Porto.

D. JoãoII já havia também evitado um quase Progron no Porto - que felizmente não aconteceu - isto muito antes da inquisição chegar a Portugal.

De resto, nem sempre a liberdade foi lá completamente soberana nem hoje o Porto está tão decadente ou o sentido ou a sua tradição de liberdade tão embaixo como isso. A decadência noutros planos e entre o seu elitismo já pode ser um facto. Seja como for - um bocado radical.