Matar a regionalização

|CARLOS ABREU AMORIM|

Sob pena de fruir de uma candura já sem hipótese de redenção, ninguém se pode admirar pelo facto de José Sócrates ter enjeitado mais um dos seus múltiplos compromissos eleitorais.

Na verdade, é difícil recordar um só que tenha sido levado até ao fim - a regionalização, apesar de reiteradamente anunciada nos programas dos dois Governos socialistas, no fenecido PRACE, em comícios e em exibições "marketeiras" variadas, acabou por ter o triste fim de todas as demais declarações de intenções deste primeiro-ministro.

Servindo-se da boleia falaciosa da crise, que tudo quer desculpar (na premissa instalada de que fazer política se reduz à arte de tratar as pessoas como seres incapazes de raciocínio próprio), Sócrates voltou a dar o dito por não dito e disse que "não estão reunidas as condições" para cumprir a regionalização.

Só que não ficou por aí: na moção que leva ao Congresso deste PS tragicamente domesticado, Sócrates precipita-se num arremedo de medidas amalgamadas, sem amparo na Constituição e cujos efeitos redundariam em (ainda) mais centralização. Falo, sobretudo, na ideia de eleger directamente os líderes das áreas metropolitanas de Lisboa e do Porto.

A descentralização territorial, constituiu o modo mais idóneo de se adquirir um desenvolvimento homogéneo - até a Grécia, (pen)último reduto dos ideais centralistas, para poupar na despesa pública, regionalizou-se em Janeiro passado com o Plano Kallikratis.

Entre nós, a desigualdade mais gritante nos vários índices de riqueza e de massa crítica é a que existe entre uma faixa litoral de pouco mais de 50 quilómetros e o resto do País. E mesmo dentro dessa estreita cinta litoral, resistem discrepâncias assustadoras se compararmos os níveis de desenvolvimento da região de Lisboa (e até do Porto) com o que se passa em Setúbal, Viana do Castelo ou Leiria.

As medidas agora atabalhoadamente preconizadas por Sócrates têm o condão maligno de privilegiar as áreas mais apetrechadas e mais ricas, Lisboa e Porto, com os benefícios evidentes da descentralização, esquecendo, novamente, as restantes e, sobretudo, as necessidades pungentes do interior do País - zona que parece governamentalmente predestinada a remeter-se a lides de apascento de cabras, de turismo rural e num imenso eucaliptal, cada vez mais deserto de gente e de condições mínimas de desenvolvimento.

Sócrates, em 2007, fez cessar a "Reforma Relvas" em nome da futura regionalização - agora, reproduz vários dos seus aspectos mas retirando-lhes qualquer bondade descentralizadora.

Recordemos que as cinco CCDR já foram despidas de poderes e relevância e que foi proibida a eleição dos seus presidentes. Este chorrilho de medidas hoje ameaçadas por Sócrates irá extinguir a viabilidade do mapa das cinco regiões-plano e o projectado ensaio das regiões-piloto: nem o mais carunchoso centralista se atreveria a tanto...

Sejamos claros: Sócrates não se limitou a adiar a regionalização - caso avance o seu deplorável remendo de remodelação administrativa, liquidou o ensejo de se poder realizar uma reforma descentralizadora decente neste País, de longe, o mais obsessivamente centralizado do mundo civilizado.
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