«Não se resignem, combatam a desertificação!»

Nuno Ferreira

Numa estrada alentejana, Nuno Ferreira pensa em debater opções estratégicas sobre as finanças nacionais. Mas com quem? A estrada devolve-lhe somente interlocutores improváveis: vacas, cabras, cães. A paisagem é imagem acabada da desertificação humana. Um périplo sob a canícula que termina num «Oásis» e numa advertência: «tenha contenção, Tenha tento na língua?

Numa manhã de Julho de 2008, acordei com a televisão ligada: Um helicóptero sobrevoava o nó de Pina Manique, anunciavam-se descidas no Imposto Municipal sobre Imóveis, deduções nas despesas com a habitação, passes sociais mais baratos para os jovens.

Já na estrada, a caminho de Nisa, no Alto Alentejo, procurei debater estas novas opções estratégicas com alguém mas tudo o que encontrei foi uma manada de vacas, uma cabra a dormitar, uma quinta ao longe isolada do mundo e dos investimentos públicos. Ao fim de quinze quilómetros e duas povoações a menos - o mapa mencionava-as mas elas já não estavam lá - assustei-me com um enorme cão peludo preto e branco que avançou na minha direcção. Uma corrente travou-o a tempo.

Ouvi alguém praguejar nos fundos da exploração fantasma mas tudo o que avistei foram fardos de palha. Ali já não se colocava a aplicabilidade de medidas estratégicas para o bem dos portugueses simplesmente porque já não vivia lá ninguém. «Não se resignem, combatam a desertificação!», gritaria alguém, saído de uma comitiva de viaturas escuras guiadas por motoristas afogueados. O impacto retórico do discurso, a pose estudada no manejar calculado das mãos perder-se-ia na imensidão bravia dos penedos.

O último carro, uma pequena carrinha de distribuição de café passara há umas duas horas em direcção a Nisa. Contava com a presença retemperadora das povoações fantasmas para comer, beber, conversar. A garrafa de água de litro e meio esgotei-a pouco depois de Beirã.

Aquela vila branca cujo depósito de água avistava ao longe seria Nisa? Nestas ocasiões, o pescoço a latejar, as pernas a soçobrar, a única solução é continuar. Mais uma recta, mais uma curva, um marco geodésico, uma descida, uma subida. Pareceu-me escutar o som de uma viatura ao longe - ali ouve-se tudo numa distância de quilómetros em redor - mas, pura ilusão, não passou do restolhar das folhas das árvores umas nas outras. Sempre que os sobreiros são substituídos por folhagem viçosa, sonho com um curso de água e logicamente com a existência de vida humana. Até que numa placa inscrita numa ponte li «Junta de Freguesia de Povoa e Meadas, Obra do Estado Novo, Melhoramentos Ruraes». Cerca de meia hora mais tarde, dobrei uma curva e avistei um cemitério. Bom, pensei para comigo, lajes para me deitar já tenho.

Mais adiante, sucederam-se casas brancas debruadas a amarelo, atravessei uma praça e, sim, lá ao fundo, avistei um ser humano de sexo masculino, de idade compreendida entre os 60 e os 80, a caminhar devagar. Corri à velocidade permitida pelo cansaço e calor, perguntei por um café, uma tasca e daí a pouco - oh felicidade - subi as escadas do Restaurante «Oásis», dando entrada numa sala equipada com um moderno ar condicionado. Depois de um litro de água bebido à velocidade da luz, finquei a garfada numa suculenta pluma de porco preto quando vi a Assembleia da República na televisão: «Acha razoável, senhor deputado, chamar ladrões aos empresários, insinuar que o governo anda de mão dada com eles? Tenha contenção, tenha tento na língua».

Chamei o empregado, pedi um jarrinho de tinto e cantei baixinho Jorge Palma: «Ai Portugal, Portugal, de que é que tu estás à espera? Enquanto ficares à espera, ninguém te pode ajudar».
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