A eventual redução de concelhos e freguesias

A polémica em torno da questão da divisão administrativa do país é um tema recorrente entre nós, apaixonando de forma extrema os povos, os cidadãos e os dirigentes políticos.

Há não muito tempo, em Fevereiro de 2006, anunciou-se que a Lei-Quadro de Criação de Autarquias Locais passaria a chamar-se “Lei-Quadro de Criação, Fusão e Extinção de Autarquias Locais, para pôr em marcha a fusão de freguesias com dimensões mínimas”. A operação, segundo o secretário de estado que então tinha a tutela do assunto (Eduardo Cabrita), começaria nas áreas metropolitanas de Lisboa e Porto, nos municípios com mais de 50 mil habitantes. A ANAFRE reagiu energicamente e os jornais passaram a dizer que o governo apenas queria agrupar algumas freguesias das zonas urbanas. Depois, o assunto foi adormecido.

Antes disso, em 2003, o presidente da república (Jorge Sampaio) vetou uma nova lei-quadro dos municípios aprovada na Assembleia da República pela maioria PSD/PP, suspendendo a criação, entre outros, dos concelhos de Fátima e de Canas de Senhorim.

As razões invocadas para o chumbo presidencial prenderam-se com a ausência no diploma de «critérios firmes, gerais e abstractos» que consubstanciassem «o esforço de aperfeiçoamento de atribuições e competências das autarquias locais e de adequação da respectiva escala às novas necessidades de satisfação dos anseios das comunidades».

De facto, a tentativa de contornar a Lei 142/85, de 18 de Novembro, introduzindo um aditamento “habilidoso” ao art.º 2º que possibilitaria a criação de novos concelhos, mesmo que não tivessem um mínimo de 10 000 eleitores (30 000 nas áreas de alta densidade populacional) e uma área mínima de 24 km2 (500 km2 nas áreas de baixa densidade de população), era manifestamente oportunista.

Sampaio lembrava no seu veto presidencial que estavam na calha iniciativas tendentes à criação de 18 novos municípios, tendo sublinhado que se deveria proceder a um amplo debate sobre o recorte territorial do sistema municipal, propondo a elaboração de um Livro Branco.

Muito antes disso, em 1998, poucos meses após as eleições autárquicas, foi apresentado, na Assembleia da República, um projecto global com vista à criação de algumas dezenas de novos municípios.

No rescaldo do referendo acerca da regionalização administrativa do território continental, o PSD, que militou pelo não e ganhou, pretendia sublinhar que “o futuro passaria por um aprofundamento da municipalização” e, por isso, dizia então, se deveria criar mais municípios.

Do extenso pacote inicial foi possível chegarem à votação final três novos municípios: Odivelas, Trofa e Vizela. Isso aconteceu porque estes eram os projectos cujo preparo administrativo era suficiente e, também, porque houve uma (estranha) sintonia nas vontades partidárias com assento parlamentar.

As circunstâncias políticas então vividas na Assembleia da República vieram a determinar a autonomização de Odivelas e, em coerência com o que tinha explicitado em tempo oportuno (no acto de apresentação pública da candidatura em Janeiro de 1997), demiti-me da presidência da câmara municipal de Loures porque entendia, como continuo a entender, que se tratava de um acto desnecessário, oportunista e, pela forma como foi conduzido, inconstitucional.

Como escreveu Gournay “ em todos os países e em todas as épocas, os homens sempre se mostraram descontentes com a sua administração” e, por isso, uma das fórmulas recorrentes a que os novos governos deitam mão para cair nas boas graças da “opinião pública”, é anunciar uma comissão que irá estudar a “reforma da administração pública”. Depois, com o tempo e perante as “realidades”, a coisa esmorece.

É necessário ter em conta que uma reforma administrativa séria determinaria, em qualquer país e independentemente do sistema político, muito trabalho, muito debate e, sobretudo, representa, pelo menos numa primeira fase, aumento da despesa. Não é coisa que se faça em poucos meses, sem dinheiro e apenas com um lápis, um mapa e uma calculadora.

Ora, o que nós aí temos, ditado pela Troika, e porque isso lhe chegou aos ouvidos a partir de fontes nacionais, é a imposição de uma reforma administrativa com incidência, entre muitas outras coisas, no número de concelhos e freguesias, que diminuiriam de forma drástica por motivos quase exclusivamente orçamentais (diminuição da despesa pública).

Esta imposição é apresentada aos portugueses como uma necessidade de modernização e racionalização que adeqúe o país aos standards europeus.

Torna-se, então, necessário esclarecer que a Europa não tem fundamentos éticos e políticos para impor a Portugal uma realidade que ela própria não verifica na maior parte dos seus membros originários.

De facto, desde há cerca de 175 anos que foi feita em Portugal uma reforma administrativa profunda, com incidência, entre muitos outros aspectos, no desenho territorial do sistema político-administrativo, reduzindo em cerca de 400 o número dos concelhos há data existentes e introduzindo metodologias que evitaram o crescimento do número de municípios até cerca de mil.

Com o advento do liberalismo, Mouzinho da Silveira primeiro (1832), através de uma reforma então muito criticada e apodada de estar impregnada de “francesismo” e de centralismo, e Passos Manuel depois, na sequência do setembrismo (1836), introduziram as bases da administração moderna e liberal no nosso país. Uma das medidas introduzidas em 1836 foi a já referida redução do número de concelhos, que ficou transitoriamente fixado em 351, de modo a permitir a viabilidade e eficácia da sua administração. Quanto às freguesias a situação manteve-se incerta, do ponto de vista administrativo, até finais do século XIX.

Esta grande reforma no formato da administração ao nível territorial não teve paralelo na Europa durante cerca de um século.

No caso da Alemanha, países nórdicos, Bélgica e Holanda, só se operou uma reforma administrativa com expressão significativa na redução do número de concelhos nos anos sessenta do século XX. E, mesmo assim, a Bélgica ficou com 600 municípios e a Holanda com 500 (hoje tem 430)!

Na Inglaterra ocorreu no início dos anos 70, sob o impulso neoliberal, a uma redução de 1500 para cerca de 450 no número das local authorities. No Reino Unido existem hoje 406 entidades equivalentes aos municípios portugueses, embora haja, também, 28+3 autoridades autárquicas de nível regional.

Na França, onde “chaque paroisse, chaque commune”, na Espanha e na Itália nunca se procedeu a qualquer diminuição sensível do número de concelhos mantendo-se respectivamente em 36 682, 8 116 e 8 094!

E não se pense que são casos ímpares. A República Checa, que é o país com o mais baixo número de habitantes/concelho (1 900) tem 6250 concelhos e a Eslováquia 2928.

É interessante verificar que, na União Europeia a 27, do ponto de vista da “racionalidade” aritmética desta matéria, os países que se encontram em “melhor” situação são, por ordem decrescente: Reino Unido, Dinamarca, Lituânia, Irlanda, Países Baixos, Grécia, Portugal e a Suécia! Ou seja, isto demonstra de forma clara que não há qualquer relação racional entre o nível de desenvolvimento, o grau de dificuldade orçamental pública e o tipo de desenho administrativo territorial!

Parece, portanto, poder concluir-se que a urgência com que determinadas entidades querem concretizar uma reforma que leve ao corte no número de municípios portugueses é desprovida de fundamento.

A reforma da administração pública é, se feita numa base de honestidade intelectual e seriedade política, necessária e positiva, incluindo nela, em algumas situações bem ponderadas, a redução do número de freguesias e, até, de municípios, mas, e sempre, ao mesmo tempo que se opera à alteração do número de entidades da administração central e se concretiza uma regionalização efectiva, neste caso, através de uma metodologia gradual que se vem, aliás, propondo há alguns anos. Não é, contudo, possível proceder a esta reforma, difícil em si mesma, sob a batuta e de acordo com os princípios defendidos pela Troika.

Mesmo segundo uma perspectiva política que se imagina ser próxima às forças partidárias da actual maioria, não se afigura prudente o governo deixar enredar-se neste processo, que se antecipa ser de enorme conflituosidade institucional e social. Ora, para conflitos, já lhe devem chegar aqueles que são certos.

|Demetrio Alves|
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