Para que haja
descentralização, importa que, através dos seus órgãos, a coletividade
territorial apareça como portadora de vontade e poder próprios, e não apenas
como simples portadora de interesses, de necessidades, de aspirações e de
opinião próprios.
Muito menos bastará que
a coletividade territorial intervenha como simples auxiliar da administração do
Estado na implementação dos planos e programas de ação deste
(...)
A inexistência de um nível intermédio entre
o Estado-Governo e a administração municipal é geradora de incoerências,
equívocos e uma acentuada ineficiência que se reflete nos dois extremos da atuação
administrativa. Potencia a irracionalidade na repartição de poderes e acentua
um predomínio anacrónico do Estado-Governo no nosso panorama administrativo. Contrariando a letra e o espírito da
Constituição da República, prejudicando a implementação dos fins de interesse
público e gorando as expectativas e os interesses dos cidadãos.
As diversas tentativas de preencher esse
vazio têm sido várias, com saliência para a desconcentração dos serviços da
administração direta e para a criação, quase descomedida, de institutos
públicos e outras entidades que se reconduzem à administração indireta, mas
sujeitas à superintendência do Estado-Governo e a apertadas formas de
intervenção tutelar. Não se conseguindo vislumbrar ganhos relevantes na
racionalização global da administração pública, nem na prestação de serviços à
comunidade.
O contexto político que envolveu o
referendo da regionalização do continente, realizado em 8 Novembro de 1998, fez
com que o tema do modelo de organização administrativa e das relações entre os
municípios e o poder central fosse enquadrado num discurso político, eivado de
um maniqueísmo aligeirado, que obscureceu as verdadeiras dimensões do problema
e favoreceu a manutenção do status quo.
O rotativismo democrático fez com que
aqueles que lideraram o repúdio ao processo de regionalização, alguns anos mais
tarde se encontrassem em funções governativas.
Perante este modelo administrativo
contraproducente, o Governo de então decidiu tentar um esforço de mudança.
Tinha dois caminhos possíveis: ou, de certo modo, revelava grandeza política e
“dava o braço a torcer” fazendo aprovar um modelo de divisão regional que
consagrasse uma descentralização territorial e política com novas autarquias
locais supra-municipais – com eventuais melhorias evidentes em relação ao que tinha
sido massivamente rejeitado em referendo; ou ensaiava um modelo peregrino,
atípico, que escapasse à classificação de “regionalização” mas que conseguisse
almejar a classificação genérica de “descentralização”.
Embora intencionalmente desprovida de qualquer
aspeto político e o Estado-Governo permanecesse como o verdadeiro “dono” dos
poderes essenciais das novas entidades administrativas. Foi esta última opção
que se preferiu.
Qual o fundamento lógico para esta
construção jurídica aparentemente tão sinuosa, repleta de um hibridismo
conceptual e plena de indeterminação quanto aos limites das figuras que
consagra?
Julgamos que a resposta reside no campo
intrinsecamente político – correspondeu-se à falsa necessidade de não
retroceder no discurso do ”Não” à regionalização mantendo vivos os demónios
então criados no imaginário político nacional.
Daí resultou a tentativa de fazer uma
espécie de descentralização territorial fugindo os elementos típicos desta –
fazendo lembrar o adágio popular acerca dos que querem fazer “omeletas sem
ovos” -, visando esconjurar as possíveis acusações de incoerência política.
Assim, gerou-se a atual reforma que, sendo
nova no modo e no conteúdo, levanta demasiadas perplexidades e dificuldades
lógicas que possam permitir encarar esta reforma como possuindo possibilidades
de êxito.
(...)
Áreas metropolitanas – desconstrução legal de um conceito
(Análise das novas
entidades da organização administrativa local - 2003)
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