Refundar o Estado

O poeta António Patrício escreveu num dos seus versos "Portugal é um navio naufragado em que a tripulação espera há séculos..." Tenho para mim que um dos fatores mais decisivos para esta situação de naufrágio com a terra (prometida) à vista se chama centralismo e a sua consequência espúria, centralização.

Mas não se pense que o centralismo visa os interesses do país e a defesa da unidade da pátria, como alguns arengavam aquando do lamentável e mistificador referendo sobre regionalização. Nada disso. Ele visa sobretudo a defesa de interesses pessoais ou de grupos, grupúsculos e grupelhos instalados na capital. Se os românticos inventaram a caça aos dotes, os centralistas, desde os próceres do Estado Novo até aos profissionais que se utilizam da democracia, dedicam-se à caça aos empregos, benesses e acumulações.

Para Lisboa, emprego qualificado, quadros superiores, administradores e técnicos de prestígio, para o Porto e o Norte mão-de-obra barata, debandada de quadros, emigração, desempregos desqualificados e pós-graduações em gangues, assaltos, violência e ausência de perspetivas de futuro para muitos jovens empurrados para o crime. É um país justíssimo!

Para contrariar as perversões centralizadoras, já sentidas pela I República, e combater os obstáculos  ao desenvolvimento da Região, em 1919, o Município Portuense lançou as bases de um Projeto de Federação Administrativa do Norte do País. O Burgo era então uma cidade orgulhosa de si, em intensa renovação urbana sob a égide republicana, altiva e dinamicamente disposta - apesar das dificuldades e problemas da época - a impulsionar verdadeira reforma do Estado.

O relatório que acompanhava os estatutos daquele projeto é notável peça política em que o centralismo é posto em causa. Atente-se no preâmbulo "A experiência mostrou que o governo central não realizou, nem virá a ter capacidade para realizar, em bom rendimento, a modernização dos serviços que mais interessam ao progresso regional."

E, depois de circunstanciada relação das medidas estruturais que não haviam sido plena e adequadamente concretizadas, resume "Providências educativas e de fomento não têm vindo do poder central, em método e intensidade tal, que possamos esperar confiadamente por uma próxima renovação eficaz da vida portuguesa em benefício da Grei". Os defensores da descentralização do Estado desacreditavam que da capital pudesse vir verdadeira e competente modernização do país, em benefício de todos.

O documento propunha a constituição de uma Junta de Fomento, representativa dos Distritos e Municípios do Norte. Tratava-se de um "organismo coordenador das atividades municipais e distritais (...) que promova a remodelação da vida económica, base da melhoria social." Empenhado "em conseguir que se congreguem os mais sabedores, os de maior iniciativa e os de maior virtude na salvação da nacionalidade, pelo progresso social, que, há de fazer-se, aproveitando da melhor forma os recursos da gente e dos valores naturais." Rejeitando a burocracia e o aparelhismo administrativo, a Junta pretendia ser racional, eficaz e "diminuta", constituída por oito procuradores eleitos pelos Distritos e outros tantos pelos Municípios.

Pormenor significativo a Câmara do Porto contribuía para o pagamento de metade das despesas com a Junta e a Direção de Fomento! Assim se via a pujança e a determinação da cidade em avançar com as bases de autêntica refundação do Estado.
Ficou tudo em águas de bacalhau e os resultados estão à vista. (À atenção dos centralistas, que, normalmente, falam mau português: refundar não quer dizer tornar a fundar mas sim tornar mais fundo. É disso que se trata: aprofundar a própria democracia).

Hélder Pacheco, Professor , e escritor
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