Mercadorias... Alentejo. Certo?

Voltando ao princípio: em 2003 o Governo de Durão Barroso assinou com Espanha um acordo de ligação de linhas de alta velocidade em bitola europeia com quatro eixos: Lisboa-Porto-Vigo, Lisboa-Madrid, Lisboa-Faro-Sevilha e Aveiro-Salamanca. Umas só para passageiros, outras para passageiros e mercadorias (capacidade para suportar mais peso e menores inclinações). Os espanhóis avançaram, nós não.

Compreensivelmente, talvez. O Portugal de 2003 estava "de tanga", dizia Durão Barroso. Mas fomos recuperando. Em 2007, Sócrates e o ministro das Finanças, Teixeira dos Santos, conseguem o défice mais baixo de sempre desde o 25 de abril. Mas quando surge a crise financeira mundial em 2008, o Mundo muda. Em 2009 percebe-se que a Grécia vai ser desamparada da proteção do "euro alemão".

E é já em 2010, três dias antes da apresentação do PEC II (os planos de cortes para assegurar menores défices) que Sócrates opta por manter o investimento no TGV. A 8 de maio assina o contrato de uma só linha e fá-lo da pior maneira: opta por construir a linha Lisboa-Madrid apenas para passageiros e continua a falar em 'TGV' como se estivesse a vender um "ferrari ferroviário". Era impossível os portugueses compreenderem a urgência de um comboio-fantasma a 300km na paisagem enquanto o país ia a caminho da bancarrota.

Pior: o facto do Governo PS ter optado pela linha Lisboa-Madrid ressuscitou os fantasmas da prevalência dos interesses de Madrid (uma linha para Lisboa) em vez dos de Portugal (criar uma rota ferroviária para exportar mercadorias). Mais: a única linha que, em teoria, não tinha prejuízos de exploração, era o TGV Lisboa-Porto, com sete milhões de passageiros/ano. Esta ligação tinha ainda a virtude de criar uma alternativa à velha e esgotada Linha do Norte.

Sócrates descurou também o casamento, essencial, entre o transporte de mercadorias em bitola europeia com o território onde tem a sua indústria e principais portos. Daí a importância de construir a nova Linha do Norte e de a ligar à nova via Aveiro-Salamanca. Com este eixo construído estaria criada uma alternativa à rota rodoviária de camiões que sai por Vilar Formoso rumo à Europa.

No século XIX a história foi igual. O país partiu-se a meio entre os que defendiam a criação dos caminhos de ferro (Alexandre Herculano) e os que achavam um suicídio por força do endividamento (por exemplo Almeida Garrett). Ambos tinham razão, tal como hoje. O país precisa de comboios e a ferrovia gera dívida.

Aqui chegados, há três conclusões possíveis. Primeira: a União Europeia tem estado desde há muito disponível para dar grandes comparticipações à criação de ferrovia em bitola europeia a Portugal e Espanha. Não vai ser suportável por muitos mais anos manter (por exemplo) o fluxo português de 12 mil camiões por semana carregados de contentores rumo à Europa. Precisamos de exportar com custos de transportes mais baixos e menor custo ambiental. Não precaver isto é um suicídio.

Segunda conclusão: as novas linhas ferroviárias permitem comboios de passageiros mais velozes, com melhores ligações dentro de Portugal e no espaço ibérico. Isso é muito importante para uma economia feita através da circulação de pessoas - a economia do conhecimento. Hoje existe uma classe, os 'proletários do conhecimento', que se desloca regionalmente (entre universidades, empresas, centros de decisão, investigadores) e que trabalha enquanto viaja. Sem uma rede eficiente de transportes estamos condenados a vê-los partir. O automóvel é uma perda de tempo e de desgaste infinito.

Por fim: esta solução do Governo de fazer o Poceirão-Caia (com ligação a Sines) é mistificadora. Estamos a criar um eixo de transporte de mercadorias para supostos grandes barcos, carregados de mercadorias do Oriente, que vêm descarregar a Sines. 

Há nisto um grande valor acrescentado para Portugal? Estamos a apostar tudo na hipótese Sines, sem confirmação garantida, enquanto já existe, hoje, esta realidade: a indústria portuguesa não está no Alentejo. Está entre Setúbal e Viana dos Castelo. Porquê mercadorias a atravessar o Alentejo? Nada disso: o Governo mantém a construção de parte da linha Lisboa-Madrid. Para já, supostas mercadorias. Depois de construída, um dia, alguém a usará também para passageiros. O 'TGV'.
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@JN

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