A discussão pública a que temos assistido sobre a possibilidade de
autarcas que exerceram três mandatos consecutivos num município poderem
candidatar-se e ser eleitos noutro concelho revela, por si só, quão necessárias
são as regras que impõem a limitação de mandatos em cargos públicos.
De facto, a instituição de limites à liberdade e ao direito de
serem de novo eleitos aqueles que exercem o mesmo cargo político em mandatos
sucessivos e durante vários anos foi introduzida na ordem jurídica dos regimes
democráticos e republicanos para a proteger de dois riscos:
- a limitação das escolhas dos eleitores em consequência da
vantagem competitiva de quem ocupa já um cargo político;
- a personalização do cargo em consequência da progressiva
construção de redes de dependência pessoal e clientelismo centradas no titular
do mesmo.
A regra procura prevenir riscos que a experiencia demonstrou
existirem, o que não significa que esses riscos sejam observados em todos os
casos, e viu o seu campo de aplicação progressivamente alargado. Hoje está
instituída em vários órgãos políticos e da administração de carácter unipessoal
e executivo, bem como em instituições públicas de direito público ou de direito
privado como, por exemplo, nos órgãos de governo de ordens e de fundações.
Em abstrato todos concordam com a regra. Não há quem publicamente
defenda ser a limitação de mandatos um mau princípio, pelo contrário. Os
problemas surgem quase sempre na sua aplicação prática. É nessas situações que
surgem reações, quase sempre daqueles que, estando no exercício dos cargos,
procuram, com argumentos jurídicos, por vezes com expedientes, evitar que a
regra se lhes aplique.
Os expedientes jurídicos mais usados têm sido a alteração dos
estatutos da organização, da designação do cargo ou dos limites territoriais ou
organizacionais da instituição, invocando-se depois que não se trata, rigorosa
e juridicamente, do mesmo cargo ou da mesma instituição, pelo que não se aplica
a regra da limitação.
No caso da limitação dos mandatos autárquicos, a polémica e as
dúvidas surgiram muito tempo depois de a lei ter sido aprovada. Apenas no
momento da sua aplicação, quando alguns autarcas, apesar de já terem exercido o
mesmo cargo durante doze ou mais anos, passaram a fazer uma interpretação da
Lei diferente daquela que era feita pela grande maioria dos autarcas, se criou
um problema.
Ou seja, estamos perante um caso exemplar do modo como os
próprios, no exercício dos cargos, procuram, com argumentos jurídicos,
contornar a lei e perpetuar a sua condição. A polémica revela pois que não é
possível confiar na bondade do princípio para o garantir. É por estas e por
outras que se justifica, portanto, a necessidade de limitação dos mandatos com
força de lei, bem como a sua efetiva aplicação.
Em todo este processo, é incompreensível que os partidos políticos
parlamentares e a Assembleia da República recusem clarificar a lei, preferindo
remeter para os tribunais a resolução da ambiguidade entretanto descoberta e
rapidamente aproveitada por quem, efetivamente, não quer a aplicação do
princípio da limitação dos mandatos. Esta incapacidade revela uma outra
dificuldade dos partidos.
A dificuldade em ultrapassar o tacticismo, assim contribuindo para
subalternizar a ordem política e os princípios democráticos em relação à ordem
jurídica.
A iniciativa da Assembleia da República nesta matéria, no sentido
de esclarecer uma Lei que foi elaborada e aprovada no âmbito das suas competências,
teria por isso o mérito adicional de contribuir para a credibilização da
atividade e das instituições politicas.
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