O romance da Casa do Douro é uma obra de se lhe tirar o
chapéu. Não lhe falta grandeza nem miséria, amores e desamores, temor e falta
de respeito, juras eternas de bem-querer, abandono e desleixo, acção e inércia,
bonança, tempestades, e vergonha e falta dela.
Outrora grande, poderosa, influente e até temida, a dama foi
perdendo vigor, foram-lhe subtraindo o poder de influência e mais os meios de
subsistência, serviram-se dela enquanto quiseram e porque ela deixou, para a
páginas tantas a despedirem como velha criada sem préstimo a quem mais não
resta do que enlouquecer e se por a cantar.
Num tempo de registos pouco elevados, nem a história lhe
respeitam. Depois de ter sido uma poderosa organização, a Casa do Douro,
associação da lavoura duriense, mirrou ao ponto de mais não restar do que o seu
enorme edifício sede, encalhado em terra firme, virado um verdadeiro “Titanic”
abalroado por interesses entrecruzados e minado pela inércia de um sector que
não sabe a força que tem, enquanto anda entretido a criar rótulos para meia
dúzia de garrafas da lavra de cada um.
Ao longo de seis décadas, a Casa do Douro regulou uma das
mais importantes actividades económicas do nosso país. Depois, num contexto que
daria para um tese de mestrado, a meio da década de noventa do século passado
alterou-se o quadro institucional da Região Demarcada do Douro passando o mando
delegado pelo Estado à Casa do Douro para outro organismo então criado, a
CIRDD, integrada depois no IVDP, com a promessa das respectivas contrapartidas
financeiras uma vez que a retirada do poder regulatório, implicou a consequente
perda de receitas.
Não passou de balelas no entanto semelhante prometer em
escrito levado pelo vento, apesar de solene. Depois para piorar, um negócio
eventualmente bem pensado mas muito mal sucedido, levou pela pia abaixo um
montão de notas em posse própria, e mais outro que se pediu em empréstimo.
Somado a isto a compra de excedentes anuais de vinho para que os túneis nas
adegas particulares se esvaziassem, com recurso a dinheiros emprestados levou a
uma situação de dívida de um ror de milhões de euros. Cento e sessenta milhões
de euros, cada dia a somar por causa dos juros é em quanto vai.
Chegamos ao fim do primeiro capítulo, com o seguinte a
prometer ser melhor, ou não fossem Estado e Região, personagens de truz nos
comportamentos respectivos ao longo do romance. O primeiro mais não tem sido do
que um verdadeiro marialva que diz que faz mas não faz, que não respeita quem
tem em casa, enquanto a segunda, que somos nós, permite o abandono e a falta de
respeito, coisa que não sabemos exigir, quem sabe porque o não temos por nós
mesmos. Digo eu.
Logo no começar da segunda parte, estão a dizer-nos quanto
valem os vinhos em cubas penhoradas mas atestadas com cerca de cento e trinta e
cinco mil pipas de néctares colhidos de 1934 para cá. Com eles, fazendo-se
especial favor irá pagar-se a dívida. Assim, numa primeira impressão nem parece
mal. No entanto alguma reflexão se impõe para que não falte o bom senso nem a
justiça ou até a honradez no negócio como é timbre de gente de bem.
Por um lado, a avaliação dos vinhos é justa? Vamos acreditar
que sim. Pelo outro, havendo tanta fome de dinheiro pelas bandas do Terreiro do
Paço, existe ou não o risco de os vinhos serem quem nem os quadros do Miró,
vendidos à pressa e à melhor oferta? Será que existe a noção do mal que tanto e
tão bom vinho pode causar caso seja colocado no mercado sem os devidos cuidados
no que respeita a quantidades?
Seguindo o romance. Para que nisto se chegue a bom porto,
deverão alterar-se os estatutos da Casa do Douro. A instituição fundada em 1932
deixará de ser de inscrição obrigatória e passará a ter cariz meramente
privado. Não sou adivinho, mas nada custa imaginar daqui a um par de anos por
essa região afora, uma mão cheia de associações de lavradores cada uma a
defender ou a julgar que defende interesses tidos como muito próprios, apesar
de serem inequivocamente comuns.
Para terminar o romance, mesmo não sendo escriba de muita
imaginação, nada custa ver um filme em que com muitos mais associados que a
Casa do Douro, se calhar então das mais pequenas se ainda existir, alguma
achar-se no direito de com todo o desplante, se arrogar no direito de passar a
deter o património erguido por gerações de viticultores durienses que cuidaram
melhor das vides que das vidas.
Não sei, poderei até estar a delirar. Talvez por isso me
custe a perceber como é que quando para ir da Régua a Alijó uma pessoa se
despedia da família por a jornada ser longa, a região se uniu para defender os
seus interesses dando forma e conteúdo à Casa do Douro, ao passo que hoje,
tempo em que não há distâncias, não surge paladino que se veja nem voz avisada
que se ouça.
O Romance da Casa do Douro ainda não chegou ao fim. Mas seja
como for, existe o enorme risco de todos nele virmos a ficar mal, pois tendo
tudo para um final feliz poderá vir a dar em drama de faca e alguidar.
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